Mohammed Elhajji
O objetivo do presente artigo é tentar apreender a questão da globalização a partir de seus aspectos técnico-tecnológicos e culturais-civilizacionais. O processo é de natureza essencial¬mente tecno-organizacional, pois a particularidade da época contemporânea reside na rearti¬culação das relações sociais e de produção em torno das novas tecnologias de informação e de comunicação (NTICs). A especifi¬cidade dessas tecnologias consiste no deslocamento das instân¬cias de mediação política, econômica e social da dimensão espacial para a temporal, e a instituição do princípio da instantaneidade como base de regulação de nossa experiência signifi¬cativa. A globalização diz respeito a um modo de inscrição das relações de sentido num novo quadro conceptual, marcado por uma temporalidade tecnológica e informacional inédita, cujos desdobramentos estruturais não são apenas de ordem organiza¬cional, mas antes civilizacional, comparáveis às mutações decor¬rentes da Renascença ocidental.
Introdução
Mundialização ou Globalização?... A terminologia sofre de uma certa dose de incerteza como geralmente acontece nas novas áreas do saber. Enquanto em inglês, o conceito é reduzido a uma só palavra (“globalization” ou às vezes “globalisation”), as línguas de origem latina dispõem de dois termos-definições: “mundia¬lização” e “globalização”. Em português como em espa¬nhol, essa hesitação se traduz pela tendência a usar indiferen¬temente um ou outro. Já a literatura de língua francesa obnubi¬lada por suas veleidades de resistência à hegemonia anglo-saxã, geralmente opta pela “mondia¬lisation” em vez de “globalisation” - suspeita de anglicismo!... A ques¬tão, porém, não é apenas de ordem lexical ou etimológica, mas sim conceptual e teórica.
Mundialização, com efeito, não é globalização. É uma etapa que a precedeu e até a prenunciou de certo modo, sem todavia ter contido a totalidade de suas virtualidades ou esgotado o conjunto de suas possibilidades e seus desdobramentos. O fenômeno de mundialização era de natureza essencialmente espacial, relativo à concepção copernicana e finita do planeta, à descoberta de novas regiões do mundo e sua conquista pelos europeus. Enquanto o processo de globalização se inscreve na ordem info-temporal e tecno-organizacional, na medida que a particularidade da época contemporânea reside na rearticulação das relações sociais e de produção em torno das Novas Tecnologias de Informação e de Comunicação (NTICs). A especificidade dessas tecnologias, por sua vez, consiste no deslocamento das instâncias de mediação política, econômica e social da dimensão espacial para a temporal, e a instituição do princípio de instantaneidade e de imediatez como base de regulação de nossa experiência significativa. Trata-se, portanto, de um novo conceito de velocidade, não mais físico mas cognitivo, relativo não mais às distâncias físicas, mas sim ao volume de informação gerada ou acessada.
1. A Esfera Cognitiva
A globalização, pois, diz respeito a um modo de inscrição das relações de sentido num novo quadro conceptual, marcado por uma temporalidade tecnológica e informacional inédita, cujos desdobramentos estruturais não são apenas de ordem organiza¬cional, mas antes civilizacional, comparáveis às mutações decor¬rentes da Renascença ocidental. Se a época seiscentista colocou o sujeito moderno-ocidental no centro do espaço-mundo, excluindo e empurrando às margens da humanidade tudo que não cabe no seu quadro óptico e teórico (theoria = ação de olhar ou examinar), a globalização pôs este mesmo sujeito no centro do tempo-mundo, impondo uma nova perspectiva civilizacional de natureza tecno¬lógica, temporal e informacional única e universal a toda a socie¬dade humana. O trabalho de edificação desta nova “semiose” se dá, principalmente, através das novas tecnologias e redes computa¬cionais que prefiguram novas fronteiras, não mais físicas mas sim eletro-cognitivas ou cogni-computacionais, e uma nova esfericidade do mundo, não mais geométrica mas sim episte¬mológica e cognitiva. As coordenadas dessa esfera cognitiva, contudo, correspondem, rigorosamente, aos pontos de projeção dos planos éticos e estéticos do Ocidente. No processo de trans¬ferência de nossos mapas semân¬ticos da dimensão espacial para a temporal, pois, o Ocidente não se apre¬senta mais como região geográfica, mas sim como fato semió¬tico ou espectro cognitivo, cujos contornos não são mais espaciais, mas sim teóricos episte¬mológicos, técnicos e tecnológicos.
Ou seja, a globalização, enquanto processo hegemônico oci¬dental, achata tanto os espaços outros como os tempos alheios. Por¬tanto, o que não cabe dentro da esfera cognitiva ocidental simples¬¬mente não existe ou não vale a pena existir; tanto o não branco-europeu como o irracional, o arcaico, o primitivo, as “supers¬tições”, etc. Tudo que não é iluminado pelo ponto de vista ocidental, moderno e racional não passa de uma massa amorfa, sem estrutura clara nem caráter definido. Fora da “semiose” racional, moderna e ocidental (sendo os três conceitos ao mesmo tempo indissociáveis e intersubstituíveis), não há possibilidade de o mundo tomar uma forma coerente; fora do quadro conceptual decorrente desse momento/lugar civilizacional não há mundo inteligível. O que, em definitivo, significa que a razão não reside nas coisas, mas sim na autoridade do olhar que as mede e a instância discursiva que as enuncia.
Ao seu nível estrutural, a globalização é o resultado de um longo processo histórico de desdobramento de uma rede planetária de redes organizacionais que, hoje, ligam Estados, grupos regionais, organismos internacionais e outras entidades institucionais locais e mundiais. Essas redes de sentido, em seu estado acabado, não foram instaladas de uma vez só e a priori por alguma força exógena, mas são, à maneira das sinapses, endógena e rizomaticamente forma¬das e desenvolvidas pelos discursos, fluxos de idéias, pessoas e bens materiais que percorrem o espaço mundial e lhe dão sua dimensão civilizacional. Ainda que o impulso inicial de um sistema universal tenha sido o produto da “semiose” hegemônica ocidental com relação ao objeto-mundo.
De certo modo, pode-se dizer que ao mesmo tempo que as redes crescem em função da multiplicação dos fluxos, estes últimos por sua vez, são estimulados, formulados e regulados pelas partes já existentes do andaime tecno-semântico planetário. Talvez uma metáfora mais crua possa ser encontrada em certos processos patológicos, quando os focos do mal se multiplicam e cobrem partes cada vez maiores do organismo; curioso é constatar que “metásta¬se”, o termo médico que descreve tal situação, seja tam¬bém operacional, num sentido concomitante, na retórica. Pode-se falar em metástase tanto quando o organismo planetário vem sendo transformado e fagocitado pela multiplicação ilimitada de fluxos e redes, como quando há um conjunto de estratagemas retóricos (o discurso globalizante) visando a convencer a totalidade da huma¬nidade que os valores ocidentais são universais e de todos.
Mesmo se os fluxos aparentem uma certa liberdade em seus movimentos de costurar a colcha de retalhos universal, na verdade, nunca se trata de total arbitrariedade ou puro acaso, mas sim de uma dinâmica semântica hegemônica global, que faz do Ocidente não mais o centro físico do espaço-mundo, mas sim uma esfera cognitiva que, ao mesmo tempo, sustenta o arcabouço organiza¬cional chamado sistema-mundo e se sobrepõe a ele, o contém e nele se mantém. Essa esfera cognitiva de natureza altamente fractal, pela qual os fluxos fluem e para a qual convergem, escoa toda a ideologia universalista ocidental e a repercute em cada via e cada nó da rede e cada um dos pontos de apoio da estrutura global. Ou seja, o discurso ocidentalizante do mundo está menos no conteúdo veiculado do que nos próprios processos, tecnologias, técnicas, línguas e linguagens de transmissão de tal discurso e que constituem, propriamente, o que chamamos de “semiose” global.
Tomando a Internet como metáfora, diríamos que essa “semiose” é constituída tanto pelos discursos em circulação como pela própria estrutura técnica-tecnológica que, em si, reproduz uma determinada visão do mundo e uma certa atitude ética-estética diante do semelhante, do diferente e do próximo. A globalização seria menos a instalação material da rede mundial do que a genera¬lização e universalização de seu modelo tecno¬lógico e lingüís¬tico como paradigma das comunicações humanas. A globalização/ampliação da noosfera ocidental não está na rede/Internet, mas sim é a própria rede/Internet como modelo universal de comu¬nicação. Não apenas ela veicula um discurso, mas sim é em si discurso globalizante e ocidentalizante.
http://www.facom.ufjf.br/lumina/doc_provisorio/R4-Mohammed-HP.doc
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