Mídia como expressão cidadã
Michel Briand
Antes de mais nada, a «expressão cidadã» significa a tomada da palavra, uma expressão de caráter público relacionada com a vida na sociedade. Nisso ela difere da expressão pessoal, e por esse motivo exige uma maior atenção na organização da liberdade, na ampliação dos “direitos da comunicação”.
Jornais, folhetos, cartazes, rádios, discursos, teatro, poemas, música, televisão, cinema, vídeos: as formas de expressão e as mídias são tão variadas quanto os meios de comunicação. O mesmo se pode dizer dos tipos de expressão: individual, associativa, artística, partidária, fórum, petição, voto... que refletem a diversidade das intervenções no âmago da sociedade.
O termo “cidadão” foi criado a partir de civitas, que designa a cidade, esta por sua vez originada de civis, que significa cidadão, aquele que habita a cidade. O termo “cidadão”, integrado na Marselhesa, hino nacional francês, e empregado durante a Revolução de 1789, provavelmente é mais forte e mais pleno de história na França do que em outros países nos quais é utilizado em um contexto unicamente descritivo e funcional.
A cidadania é expressa historicamente em um território, geográfico ou simbólico (“cidadão do mundo”). Ela surge nas sociedades abertas no cerne das quais um espaço público pode ser desenvolvido. Ferramenta essencial para a ampliação da democracia, a expressão cidadã é aquela, individual ou coletiva, que fala das relações com os outros, da vida na cidade e na sociedade.
Expressão cidadã e governança
Para ter sentido na sociedade, a expressão livre, não censurada, criadora de mundos novos, deve poder agir sobre o real. Assim, a expressão se confronta com um até seu limite: o da decisão e da ação
Os povos, que aprenderam a ler e a escrever e obtiveram pouco a pouco a extensão dos direitos democráticos, reivindicam, no presente, o direito de fiscalização sobre o modo com que são governados e a justificativa das tomadas de decisão. É nessa interação com a decisão que a expressão cidadã confronta-se com a “governança”.
“Como assegurar a continuidade entre "expressão cidadã” e “decisão cidadã”?
As fontes de informação, condição preliminar à expressão, necessárias à formação de uma opinião, são acessíveis?
Como assegurar à expressão uma qualidade argumentativa que lhe conceda força e liberdade?
Como o tomador de decisão política integra aquilo que ele entende ascender da expressão cidadã? A decisão levará em conta aquilo que não foi expresso?
A utilização da internet para a expressão cidadã já apresenta algum sucesso, principalmente por ser capaz de fazer a conexão entre as questões locais e as questões globais: planejamento da cidade, orçamento participativo, exclusões sociais, desigualdades Norte-Sul, possibilidade de patentear seres vivos humana, Organismos Geneticamente Modificados, direitos e posições da mulher..., temáticas que só assumiram seu lugar no âmago das sociedades abertas por meio do debate e da expressão cidadã.
Uma expressão que criou identidade
Além de uma expressão democrática, pela comparação entre argumentos, a expressão pública, a expressão de um público, prenche também uma função identificadora: afirmar-se em face dos outros. Para a expressão dos públicos remotos, com freqüência a identidade é o espírito dessa expressão pública. Ela é o resultado de um fosso entre a imagem projetada pelo grupo e a imagem que o grupo tem de si mesmo. Estigmatizado, o grupo procura se apropriar desse estigma e revertê-lo ou, em todo o caso, transformá-lo em recurso identificador mobilizável.
A expressão cidadã nos leva de volta à uma identificação das pessoas (individual e coletiva). As capacidades da internet para projetar essa reivindicação de identidade também a transformam em uma tecnologia que constrói vínculos sociais.
Marco de uma democracia participativa
Do ponto de vista dos habitantes, essa exigência de debate público argumentado, de identificação das pessoas introduz o marco de uma democracia participativa que dá continuidade a uma democracia representativa.
Conceder atenção à expressão é também reconhecer a importância dos pontos de vista dos cidadãos.
Conforme os modos de participação escolhidos, as formas de expressão variam:
A informação é uma expressão descendente que não espera retorno.
A consulta exige uma opinião que será compatibilizada (voto) ou sintetizada (pesquisa de utilidade pública).
A consulta implica em um diálogo que possa influir sobre a decisão.
A co-construção recorre à inteligência coletiva, à perícia de utilização dos cidadãos para co-produzir ao lado dos especialistas e dos eleitos depositários do poder.
Esta última forma, bastante rara nos dias de hoje, é certamente a mais bem sucedida, mas também a mais exigente e a mais complexa da democracia participativa.
A expressão cidadã contestatória exerce também um papel de preservação de todo o sistema democrático, ao ousar colocar problemas freqüentemente ignorados ou negligenciados pelos dirigentes.
Em torno da expressão cidadã
A expressão cidadã é sinônimo de uma determinada liberdade, adquirida ou reivindicada. As sanções e as ameaças incorridas por causa das palavras e escritos públicos, testemunham o caráter não democrático de uma sociedade, como se pode constatar ainda atualmente em numerosos países.
As tribunas de personalidades, de responsáveis ligados, a opositores políticos da, maioria, ou a expressão de organizações não governamentais, de redes militantes, de movimentos sociais fazem parte de uma expressão cidadã na medida em que elas são expressão de pessoas, agentes da cidade. Mas elas constituem apenas uma pequena parte.
É preciso examinar a função simbólica da expressão: quem se sente com legitimidade para falar? Sobre que base esta legitimidade está construída? Algumas expressões utilizam um “nós” indeterminado que se presta à confusão.
Não basta que alguns “cidadãos” com acesso às mídias de comunicação, aos locais de debate, se autoproclamem expressão cidadã para que as condições de uma expressão cidadã de qualidade estejam reunidas. Se a liberdade de expressão é uma condição fundamental da expressão cidadã, ela está longe de ser suficiente.
Raras são as pessoas que pegam da pena ou usam a palavra. Olhando ao redor todos(as) constatarão que a expressão pública não é fácil para a maior parte das pessoas. Apresentar escritos em praça pública não é um ato anódino. Apresentar para ser visto ou debatido já é um ato político, constitutivo de um projeto (de vida ou de sociedade), constitutivo de uma identidade (pessoal ou de grupo) e constitutivo de trajetórias sociais.
Da palavra pública à expressão cidadã
Assim, a expressão cidadã não vai por si, ela implica também em um percurso, um acompanhamento, um olhar crítico, um reconhecimento individual e coletivo das pessoas.
Para que a expressão cidadã seja um direito efetivo como o voto resta ainda muito caminho. Um caminho que passa antes de tudo pela aprendizagem, pela formação da expressão e por uma mutação cultural: a interiorização pelo maior número de pessoas de que esta expressão não é somente um direito mas também uma fonte de transformação social.
Hoje em dia são raras as políticas públicas que favorecem e acompanham esta tomada da palavra.
É porque a expressão cidadã é não é apenas a tomada da palavra, uma expressão de caráter público relacionada com a vida na sociedade, mas também o produto de um acompanhamento, de uma aprendizagem. É o conjunto de um processo que permite o acesso à tomada da palavras pelo(s) habitante(s) de um território, no que se refere à vida em sociedade, em uma abordagem participativa.
Esta idéia de processo evoca uma dinâmica em construção, uma organização coletiva, um reconhecimento das identidades coletivas e individuais que estejam trabalhando pela observação, compreensão, análise e reconciliação de situações. Em quais condições sociais, em qual contexto político desenvolve-se a expressão cidadã? quais são os vínculos com as ações participativas realizadas?
No âmago das sociedades da informação
Nos dias de hoje a expressão cidadã nos interpela como habitantes da cidade e cidadãos do mundo explorando novos modos de vida em comum. Quando as fronteiras do local e do global se misturam cada vez mais estreitamente, as mutações ligadas à era da informação repercutem sobre a expressão e a participação cidadã.
A tecnologia digital introduz inúmeras rupturas:
A codificação da informação torna-a reprodutível: aquilo que eu recebo está também disponível para os outros, aquilo que escrevo pode circular;
A convergência digital agrega à linha dos progressos tecnológicos a possibilidade de trocas digitais de dados, textos, fotos, sons e imagens animadas.
As formas de expressão cidadã se multiplicam, permitindo a todos tomar a “palavra” em função de suas melhores capacidades;
As redes eletrônicas conectam as pessoas para além das fronteiras por meio de múltiplos objetos comunicantes ligados entre eles por ondas, por redes de cabos ou telefônicas. A censura local torna-se impossível, a informação toca as diásporas, a cidadania local é vivida sob o olhar do mundo.
As turbulências do digital
Até recentemente, a expressão do indivíduo estava limitada pelo alcance do oral ou do escrito. O advento das mídias de massa multiplicou as capacidades de receber informações. Estamos longe de encontrar uma abrangência tal para que o cidadão comum possa aceder aos jornais, rádios ou televisões afim de se fazer ouvir.
As redes eletrônicas e as novas culturas digitais abrem, ao contrário, possibilidades inéditas para o habitante “conectado” da cidade de se exprimir e de interagir com as esferas social, pública e política.
Se os laboratórios de informática ou de telecomunicações estão no coração da expansão das inovações tecnológicas, os intercâmbios entre as pessoas constituem elemento essencial para o desenvolvimento dos usos. Os principais aplicativos da era digital, como o correio eletrônico, a rede mundial de telecomunicações, sites de bate-papo, par-a-par, blogs, foram inventados e eleitos por plebiscito no âmago das comunidades de usuários.
A divulgação das ferramentas digitais na sociedade foi acompanhada pela emergência de novas práticas de comunicação. Os milhões de sites da web tornaram-se uma fonte de informações concorrente das mídias de massa. Em um momento de debate político, um blog, obra de uma pessoa, pode atingir o mesmo nível de público leitor que um jornal ou uma rádio, tendo ainda a vantagem da interatividade. Em um território, uma revista eletrônica (webzine) se afirma em contraposição à expressão local [1]. Os sites coletivos, à imagem do Indymedia, a rede de informações contestatória mais conhecida, colocam-se em alternativa de testemunho aos resumos detalhados de manifestações ou de eventos.
Esta emergência, lado-a-lado com as mídias de divulgação “um contra todos” (jornais, rádios, TVs...), de mídias distribuídas nas quais é a expressão de pessoas ou de coletivos que predomina, interpela, nos dias de hoje, as formas de governança. A divulgação rápida das informações através do mundo permite a organização de movimentos de opinião sob formas de redes inéditas. O acesso à informações contraditórias abre o debate e impõe a necessidade da argumentação aos tomadores de decisão. A confrontação de idéias acelera a elaboração coletiva de propostas que se colocam como alternativas.
Quando o sucesso de uma mídia distribuída vem da qualidade de seus conteúdos e sua animação, tal fato só pode interpelar os tomadores de decisão habituados à uma divulgação hierárquica em nome de sua função, em direção daquelas e daqueles que, direta ou indiretamente, lhes concederam o mandato. A participação é uma cultura em emergência que ainda tem pouco lugar nas sociedades extensivamente organizadas em torno da representação e de mandatos concedidos ou outorgados.
É preciso, ainda, se interrogar sobre os valores de uso das mediações por computador. As articulações entre “agir localmente e pensar globalmente”, pertinentes no quadro dos Novos Movimentos Sociais, funcionam apenas para uma fímbria limitada da população.
Realmente, as expressões orais, escritas, gestuais, não levam em conta as mesmas nem os mesmos códigos. Discutir em um site de bate-papo (“chat”), enviar uma mensagem eletrônica em uma lista de divulgação, publicar em um fórum, abrir um blog, escrever em um site associativo, tomar a palavra em um site público, criar uma rádio ou um vídeo: nem todos dispõem das mesmas ferramentas culturais, intelectuais, cognitivas (sem falar do equipamento técnico) para dominar as novas formas de expressão. Estender essas práticas para todos(as) os(as) cidadãos(ãs) torna-se uma tarefa que deve importar a todos os atores da expressão cidadã.
A expressão cidadã questiona as mídias tradicionais
O sucesso das mídias distribuídas testemunha também um desafio aos tomadores de decisão públicos e as mídias de massa. A divulgação das mesmas imagens em todas as redes de televisão, os textos intercambiáveis da imprensa cotidiana colocam os cidadãos ativos de sobreaviso sobre a concentração das mídias de massa. No entanto, constata-se que os maiores sucessos de P2P são os mesmos do Top 50!
As mídias distribuídas, reflexo de nossas práticas sociais emergentes, podem também favorecer a repetição de um modelo “que funciona” em vez de um desvio para inventar uma outra maneira de dizer. É a este movimento em emergência que nos propomos questionar.
A contribuição das redes digitais: as novas possibilidades e seus limites
Para que exista a expressão, torna-se necessário dispor de mídias para divulgá-las. É aqui que a contribuição das ferramentas digitais derruba determinadas barreiras de acesso às mídias de massa quase insuperáveis ontem para um(a) cidadão(ã) comum.
Torna-se possível publicar uma revista de informações municipais a partir de um computador ligado a uma conexão, publicar uma revista de informações públicas, montar um site especializado sobre um tema de sociedade em debate, de interconectar rapidamente informações dos quatro cantos de um país ou do planeta. O testemunho vindo diretamente dos atores transforma-se em um meio essencial para estabelecer um relato de eventos que levem em conta todos os pontos de vista e todas as situações. Isso pôde ser visto nas últimas catástrofes naturais que atingiram o globo.
Porém, dos milhões de blogs, pouquíssimos registram a expressão cidadã; a imensa maioria visa principalmente a expressão pessoal ou no seio de pequenos grupos. E como para os jornais de bairro, publicações associativas, rádios livres, temos de constatar que o escrito coletivo que produz debates, que liga as pessoas de um território ou que traz sentido, diz hoje respeito a um número muito pequeno de pessoas. Os sites de publicação raramente ultrapassam uma centena de redatores, a imensa maioria dos leitores caminha espontaneamente para a redação nem para a escrita de comentários.
Manter aberta a perspectiva
A expressão cidadã é uma atividade de porvir, um projeto. O que é importante hoje é apoiar-se nas experiências progressistas, e permitir, ao mesmo tempo, a transferência de know-how decorrente para populações de expressão menor. Pois as ferramentas de escrita colaborativa e os software livres nos mostram que a vontade de participar do bem comum pode reunir milhares de pessoas em torno de um projeto cooperativo.
As mídias distribuídas tornam possível colocar em movimento grande comunidades que se envolvem para co-produzir conteúdos habitualmente divulgados pelas estruturas públicas. Quer se trate de ferramentas de escritório para comunicação (Open Office, Firefox), enciclopédias (Wikipedia), mapas, atlas (Open Geodata), revistas científicas (Apelo de Budapeste), conhecimentos que se tornaram acessíveis (os sites de formação e de autoformação na internet), conteúdos pedagógicos (Open Courseware)..., as iniciativas partem diretamente de indivíduos e grupos se multiplicam do lado de fora de instituições que têm no entanto essa missão. Todas essas medidas que nutrem um patrimônio comum do saber não são necessariamente vistas como políticas (entre os contribuintes da wikipedia, muitos são aqueles que fazem isso por brincadeira, por paixão...). Apesar disso, elas participam da emergência da nova forma de expressão cidadã.
Do mesmo modo, os artistas que empregam multimídias participam deste movimento. A representação digital pelo texto, imagem ou som, o recurso à simulação, à 3D, ao sampling e à remixagem, a multiplicação das obras coletivas, abertas às interações redimensionam os campos de investigação dos artistas. Determinados grupos de artistas até investem nesse campo de expressão, dando a ele uma dimensão política.
Diante dessa profusão de experiências, de vontades, diante das dificuldades encontradas para ampliar o número de participantes, há ainda muito trabalho a desenvolver para questionar as múltiplas formas de expressão cidadã e as condições de sua expansão.
Questões abertas
As tecnologias da informação e da comunicação redimensionam as tomadas de palavra possíveis por aquelas e aqueles que possuem as chaves de acesso e de uso. Para qualificar a expressão cidadã, para ampliar seus agentes, é necessário questionar permanentemente:
Quem toma a palavra? (nome, posição social), em nome de quem?
Por quê? (em que eles se sentem legitimados para fazer isso?)
Como? (por quais mídias, palavra individual ou coletiva)
Qual é o dispositivo que permite essa tomada de palavra? (técnico, cognitivo...)
Que acompanhamento torna isso possível? (iniciação, mediação, formação...)
Qual é o reconhecimento dessa expressão na governança? (quais emissões, qual incorporação nos processos democráticos clássicos)
Em que medida se leva em conta as pessoas naturalmente afastadas da tomada de palavra em uma preocupação de eqüidade?
Qual é a diferença entre “expressão cidadã” e “opinião pública”? Será fruto da outra?
Enquanto os debates tradicionais relacionados com a «liberdade de expressão” e o “direito à informação” trazem para a organização social ferramentas de divulgação da informação (liberdade de imprensa), sobre seu pluralismo (controle econômico ou político das mídias) e sobre a capacidade dos habitantes de uma área geográfica (cidade, campo, região,...) de acessar uma informação independente, a explosão da internet veio sacudir essa paisagem. Graças às mídias distribuídas da internet, a expressão cidadã questiona as formas de organização da democracia, na busca por mais participação.
Como cada habitante pode se utilizar dessa rede para se comunicar publicamente?
Para além do simples intercâmbio empre pares, amigos ou no âmago de redes associativas, como é que a escrita multimídia no espaço público da internet pode vir mudar as relações mantidas pelos cidadãos com a informação e com aqueles que os governam?
Como fazer ouvir as necessidades das populações e fazer emergir as soluções que se encontram na inteligência coletiva? As ferramentas estão disponíveis (correio eletrônico, sites da web, blogs, enciclopédias cooperativas, partilha de arquivos,...) mas um novo know-how, um “saber-dizer”, deve ser inventado e transmitido a todos, especialmente aos setores marginalizados.
http://vecam.org
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