2. O Fator V2
Ao nível organizacional, sabemos que a principal característica do quadro tecno-organizacional que sustenta o processo de globalização é a reestruturação e rearticulação das instâncias de produção de sentido da contemporaneidade em torno dos meios de produção, controle e distribuição da informação. O papel central da comunicação nessa nova ordem sócio-tecnológica criou, pois, uma base material tão inédita para o desenvolvimento das ativi¬dades humanas no sistema social e tão específica historica¬mente, que acabou impondo a sua própria lógica à maioria dos processos sociais e condicionando, de maneira fundamental e irreversível, toda a estrutura da sociedade. A importância revoluci¬onária da infor¬matização da sociedade é comparável à invenção da imprensa, da roda, da moeda, do tempo mecânico ou outras semioses respon¬sáveis pelo desencaixe do tempo-espaço, desterritorialização do sujeito e ampliação da sua força de abstração. As conseqüências das atuais inovações tecnológicas são, assim, radicais e irreversíveis tanto em termos de organização social como aos níveis psicológicos e existenciais de nossa condição significativa. As relações sociais e de produção, por exemplo, não consistem mais em uma ação sobre as pessoas e as coisas, mas sim em uma interação entre as pessoas e a informação (pessoas agindo sobre informação e infor¬ma¬ção agindo sobre pessoas). O que leva Alvin Toffler (1991, 1995) a considerar que tais mudanças não representam apenas um novo estágio da época moderna, mas constituem, verdadei¬ramente, uma nova civilização:
O que está acontecendo agora é um processo que podemos chamar de trisecção. O mundo está se partilhando em três partes ou, de maneira mais exata, três diferentes civilizações (...) Falamos em civilização porque não é apenas a tecnologia que está mudando. Toda a cultura está sendo revolucionada. Todas as instituições sociais herdadas da 2a. Onda - a da produção de massa, mídia de massa e sociedade de massa - estão em crise. Da saúde e educação à família e transporte, passando pelo meio ambiente, o nosso sistema epistemológico ou de valores como tempo, espaço etc... A razão pela qual falamos em 3a. Onda em vez de era de informação, era de compu¬ta¬ção ou era espacial é que as mudanças estão acontecendo em todos os aspectos da civilização (www.hotwired.com).
Enquanto sob o capitalismo organizado do século passado, os fluxos informacionais, financeiros, de materiais e de meios de produção e de trabalho eram extremamente arranjados no tempo e no espaço pelas grandes corporações e pelos Estados, o capitalismo flexibilizado atual, fruto do processo de globa¬lização, provoca a expansão e a multiplicação desses fluxos e aumenta a sua veloci¬dade de circulação. Na nova economia glo¬bal, o fato de não ser conectado às redes reguladoras desses flu¬xos de informação, equi¬vale a não existir no mercado. Ou seja, a produtividade e a competi¬ti¬vidade, dentro da nova divisão internacional do trabalho, dependem tanto do posicionamento dos atores com relação aos principais fluxos de informação e às redes que os regulam, como da sua capacidade de produzir e regu¬lar os seus próprios fluxos de informação. O que significa, em termos sociológicos, que a capacidade dos países de industrialização recente de adaptarem-se, produzirem e difundirem as novas tecnologias informáticas passou a ser um fator determinante de seu desenvolvimento. A informatização da sociedade (no sentido amplo) é, de certa ma¬neira, o equivalente histórico da eletrificação para o desenvol¬vimento. Com a diferença fundamental de que não se pode contentar-se de importá-la pronta para uso imediato. É uma tecno¬logia social que exige a difusão em grande escala do saber e a organização de importantes redes informacionais para poder aproveitá-la. Trata-se de um conjunto de técnicas e práticas cujo princípio não é meramente mecânico-científico, mas também social-organizacional. Do mesmo modo que o crescimento da produ¬tividade nas economias industrializadas não resulta apenas do aumento quantitativo do capital ou da mão-de-obra no processo de produção, mas sim da “expressão empírica” da ciência e da tecnologia.
A verdadeira singularidade dessa semiose, todavia, reside essencialmente no seu modo particular de reformular os conceitos de tempo e de espaço e de conjugá-los ao aparato tecnico-tecno¬lógico que constitui, por sua vez, a base da configuração social, econômica e política da época contemporânea. Enquanto a mundialização, realidade econômica e militar pelo menos desde o século XVI, era um processo diacrônico de gestão espacial que implicava necessariamente a conquista territorial, a ocupação material e o controle físico do mundo; a especificidade intrínseca da globalização se inscreve, antes, na dimensão temporal e toma forma no princípio de instantaneidade e de imediatez das relações sociais, políticas e econômicas. Na sucessão das etapas de ampliação da noosfera ocidental e sua imposição ao resto do mundo, pois, a globalização se diferencia da mundialização por seu caráter primordialmente “infotemporal”. O conceito de globalização, portanto, não deve ser entendido em relação ao globo terrestre, mas sim no sentido da globalidade de uma ação, ou seja, a sua reali¬¬zação simultânea em múltiplos pontos do espaço. O que, obviamente, pressupõe uma total sincronicidade entre as várias cenas do processo e a sua moldagem num mesmo tempo único e universal.
Há, hoje, um relógio mundial, fruto do progresso técnico, mas o tempo-mundo é abstrato, exceto como relação. Temos, sem dúvida, um tempo universal, tempo despótico, instrumento de medida hegemônica, que comanda o tempo dos outros. Esse tempo despótico é responsável por temporalidades hierárquicas, conflitantes, mas convergentes (Santos, 1994: 30).
O relógio mundial hegemônico do qual fala Milton Santos é nada mais que o tempo mecânico tecnológico abstrato e vazio, expressão de um longo processo histórico e civilizacional de “desen¬caixe social” e desvinculação da dimensão temporal da espacial, iniciado com a racionalidade moderna ocidental e exa¬cerbado pelo desenvolvimento vertiginoso das tecnologias de comunicação (no sentido amplo). Seu marco estrutural, vivido como estado natural de nossa condição moderna, é o progressivo escamoteamento da dimensão espacial pela temporal e a definitiva reversão de nossos rastros existenciais dos subjetivismos locais para uma abstração relacional a-espacial.
David Harvey afirma, neste sentido, que “a objetivação e universalização dos conceitos de espaço e de tempo permitem ao tempo de aniquilar o espaço” (1993: 261). Por outro lado, ele propõe uma equação matemática que possibilita o cálculo do grau de compressão do planeta em função da velocidade tecnicamente possível para cobri-lo. O que significa que as distâncias entre diferentes pontos do espaço físico são inversamente proporcionais ao tempo necessário para atravessá-las, tornando, assim, virtual¬mente possível a utopia do mundo como “um lugar só”, na medida que o próprio das novas tecnologias de comunicação é, justamente, a instantaneidade. Um “um lugar só”, todavia, que corresponde, necessariamente à visão ocidental deste lugar, e cujo sentido para o resto do mundo não é nada mais senão uma total e abrupta desterritorialização de seu ser social pela semiose hegemônica das tecnologias ocidentais de sentido. Destacando esta violência semântica fruto da conjugação entre o instinto hegemônico do Ocidente e seu discurso tecnológico, David Bolter, no seu livro “Turing’man”, apreende o esforço de imposição do tempo-mundo como um tipo de “última fronteira” do Ocidente, a sua vitória ideológica final:
Assim como o espaço, o tempo é uma mercadoria provida pelo computador, um material para ser moldado tanto quanto possível aos fins humanos (...) Um relógio convencional produz somente uma série de idênticos segundos, minutos e horas; um computador transforma segundos, microssegundos ou não-segundos em informação. A enorme velocidade desta transfor¬mação põe a operação do computador em um universo de tempo que está fora da experiência humana. (...) O tempo eletrô¬nico é o ponto mais avançado deste desenvolvimento (do homem ocidental), a mais abstrata e matemática noção de tempo jamais incorporada à máquina; leva a escala de tempo muito além do limite inferior da percepção humana. Representa o triunfo final da perspectiva européia ocidental, quando o próprio tempo se torna uma mercadoria, um recurso para ser trabalhado tanto quanto um engenheiro de estruturas trabalha o aço ou alumínio (apud. Ianni, 1995: 175).
A radical transformação existencial dessa emergente “expe¬riência significativa da condição humana”, reside na substi¬tuição do conjunto de vivências locais que constituem a perspectiva do espaço real pela esfera cognitiva ocidental incorporada no imediato tempo-mundo real. O princípio motor da nova ordem tecnossocial em expansão, pois, é a velocidade; fundamento inaugural que se traduz pela imposição de um tempo-mundo único e universal e pela imediatez dos modos de regulação das relações sociais e de produção. As mudanças existenciais implicadas pela vivência dessa velocidade exponencial (tanto dos meios de comunicação e das trocas como das inovações tecnológicas) superam de longe, todas as transformações organizacionais experimentadas pela humanidade até hoje. Essa velocidade não é apenas um fator de mudança social ou política, mas sim uma mudança radical em si, e a sua importância estrutural é constitutiva do sistema social, econômico e político global em curso de auto-instauração, e não uma qualidade externa que vem a ele se agregar a posteriori.
Por outro lado, se a velocidade está na base do processo de globalização, este último tem ao mesmo tempo e sinergicamente, um efeito multiplicador sobre essa mesma velocidade. A conexão das diversas fontes de saber pelo mundo, a confrontação das expe¬riên¬cias, a acessibilidade à informação em tempo real e o decalque/recalque reflexivo das vivências efetivas, possíveis e virtuais, compõem uma imensa rede tecnoneuronial global responsável por uma verdadeira fissão intelectual e imaginária - fonte de velocidade ainda maior! Nela, o mundo não se apresenta mais de maneira plana e linear, mas sim caoticamente, à maneira de um hipertexto, sem início, fim, margens ou sentido de leitura único e predeterminado. Trata-se de um fenômeno inédito, de alcance virtualmente ilimitado, onde a velocidade produz uma maior velocidade, e as mudanças geram novas transformações até então insuspeitas. O curso da História toma uma curva de velocidade fatorial, onde a aceleração da vivência vira ela mesma um fator de uma maior aceleração do curso da História. Que, por sua vez, dá um novo impulso à sucessão das relações e dos fatos sociais... propulsando as idéias, os objetos e as pessoas numa espiral sem fim de distanciamento de si e de afastamento do real.
Essa velocidade, enquanto fator estruturante do atual processo de globalização, todavia, não deve ser entendida no sentido de uma equação matemática “tempo/espaço”, mas sim cognitiva “tempo/informação”. Não se trata da definição física clássica da noção de velocidade, relativa ao “tempo necessário para percorrer uma distância dada”, mas sim de uma acepção epistemológica nova: o tempo necessário para acessar ou gerar um determinado volume de informação. Sendo a distância percorrida (o espaço) não mais determinante nas relações de sentido, na medida em que as novas tecnologias de comunicação pressupõem, justamente, a instanta¬neidade das trocas e a subordinação dos localismos geográficos a um mesmo tempo-mundo único e universal1. O grau de velocidade de movimento não é mais mensurável em quilômetros ou em milhas, mas sim em débito de bytes e em fluxo de dados informa¬cionais. E a sua aceleração é relativa à densidade da “infos¬fera” (o conjunto dos sistemas de comunicação, tecnológicos ou huma¬nos, que englobam as estruturas econômicas, políticas, so¬ciais e culturais planetários), na qual é projetada nossa cons¬ciência histórica global em gestação. A importância revolu¬cionária dessa nova configu¬ração psicossocial é compa¬rável ao impacto que teve a invenção da imprensa ou da roda sobre nosso psiquismo, em termos de distanciamento do espaço e de ampliação de nossa capacidade de abstração.
A essa nova forma de aceleração do curso da História e de ampliação da esfera cognitiva ocidental, chamamos de “fator V2” (Velocidade/virtualidade): ponto crítico de velocidade a partir do qual se desencadeia um movimento de virtualização do mundo e das relações sociais; como quando o simulacro precede o real, o nega ou a ele se refere apenas por ricochete. A mesma idéia é desta¬cada por Milan Kundera, ainda que em termos poéticos, quando ele observa que “o grau de lentidão é proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente propor¬cional ao esquecimento”. Sendo entendido o esquecimento como desespacialização ou desenraizamento da memória, afastamento do real e perda dos referenciais necessários à sua ordenação.
O espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço - aquele que ocupamos, por onde passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir - que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamen¬to deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças - explica Maurice Halbwachs (1990: 143).
De certo modo, pode-se falar em “aderência da memória ao espaço” num trabalho de construção da marca subjetiva do indi¬víduo ou do grupo; já que, na verdade, nossos processos mnemô¬nicos são acionados e desencadeados por signos espaciais exter¬nos. Assim, gestos banais como manusear o livro equivalem a recons¬tituir e enriquecer a experiência ritualística existencial do grupo de origem ou das gerações passadas, do mesmo modo que o livro em cima da estante, mesmo depois de lido, continua a dialogar “proustia¬namente” conosco. Enquanto na biblioteca virtual, onde a relação espacial é substituída pela infotemporal, em vez de reconstituir a experiência ritualística existencial de enrai¬zamento num deter¬minado universo psicológico e ima¬ginário, o sujeito se deixa simplesmente envolver na esfera estética cognitiva fruto da racionalidade tecnológica ocidental sem relação obrigatória com seu devir comunitário direto. O mesmo pode ser dito de todas as formas organizacionais virtuais (empresa, universidade, bate-papo, etc.); o que, em termos giddenianos, significa um enfraquecimento da profundidade psicológica do sujeito, uma ameaça à sua segurança ontológica e equivale a um seqüestro da sua experiência pessoal e comu¬nitária. De fato, como observa Maurice Halbwachs,
nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lem¬bram-nos nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro (...) Não é tão fácil modificar as relações que são estabele¬cidas entre as pedras e os homens. Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores (ibid.: 131).
Globalização, pois, é, antes de nada, um movimento de virtuali¬zação do mundo devido à imposição de um tempo universal e despótico que impede a multiplicação e a diversificação das expe¬riências históricas em tempos locais e variados, causando uma desorientação fundamental da realidade sensível e das relações de sentido, e uma perda de parâmetros existenciais para o sujeito definitivamente privado de seu “aqui e agora”.
Ao nível organizacional, sabemos que a principal característica do quadro tecno-organizacional que sustenta o processo de globalização é a reestruturação e rearticulação das instâncias de produção de sentido da contemporaneidade em torno dos meios de produção, controle e distribuição da informação. O papel central da comunicação nessa nova ordem sócio-tecnológica criou, pois, uma base material tão inédita para o desenvolvimento das ativi¬dades humanas no sistema social e tão específica historica¬mente, que acabou impondo a sua própria lógica à maioria dos processos sociais e condicionando, de maneira fundamental e irreversível, toda a estrutura da sociedade. A importância revoluci¬onária da infor¬matização da sociedade é comparável à invenção da imprensa, da roda, da moeda, do tempo mecânico ou outras semioses respon¬sáveis pelo desencaixe do tempo-espaço, desterritorialização do sujeito e ampliação da sua força de abstração. As conseqüências das atuais inovações tecnológicas são, assim, radicais e irreversíveis tanto em termos de organização social como aos níveis psicológicos e existenciais de nossa condição significativa. As relações sociais e de produção, por exemplo, não consistem mais em uma ação sobre as pessoas e as coisas, mas sim em uma interação entre as pessoas e a informação (pessoas agindo sobre informação e infor¬ma¬ção agindo sobre pessoas). O que leva Alvin Toffler (1991, 1995) a considerar que tais mudanças não representam apenas um novo estágio da época moderna, mas constituem, verdadei¬ramente, uma nova civilização:
O que está acontecendo agora é um processo que podemos chamar de trisecção. O mundo está se partilhando em três partes ou, de maneira mais exata, três diferentes civilizações (...) Falamos em civilização porque não é apenas a tecnologia que está mudando. Toda a cultura está sendo revolucionada. Todas as instituições sociais herdadas da 2a. Onda - a da produção de massa, mídia de massa e sociedade de massa - estão em crise. Da saúde e educação à família e transporte, passando pelo meio ambiente, o nosso sistema epistemológico ou de valores como tempo, espaço etc... A razão pela qual falamos em 3a. Onda em vez de era de informação, era de compu¬ta¬ção ou era espacial é que as mudanças estão acontecendo em todos os aspectos da civilização (www.hotwired.com).
Enquanto sob o capitalismo organizado do século passado, os fluxos informacionais, financeiros, de materiais e de meios de produção e de trabalho eram extremamente arranjados no tempo e no espaço pelas grandes corporações e pelos Estados, o capitalismo flexibilizado atual, fruto do processo de globa¬lização, provoca a expansão e a multiplicação desses fluxos e aumenta a sua veloci¬dade de circulação. Na nova economia glo¬bal, o fato de não ser conectado às redes reguladoras desses flu¬xos de informação, equi¬vale a não existir no mercado. Ou seja, a produtividade e a competi¬ti¬vidade, dentro da nova divisão internacional do trabalho, dependem tanto do posicionamento dos atores com relação aos principais fluxos de informação e às redes que os regulam, como da sua capacidade de produzir e regu¬lar os seus próprios fluxos de informação. O que significa, em termos sociológicos, que a capacidade dos países de industrialização recente de adaptarem-se, produzirem e difundirem as novas tecnologias informáticas passou a ser um fator determinante de seu desenvolvimento. A informatização da sociedade (no sentido amplo) é, de certa ma¬neira, o equivalente histórico da eletrificação para o desenvol¬vimento. Com a diferença fundamental de que não se pode contentar-se de importá-la pronta para uso imediato. É uma tecno¬logia social que exige a difusão em grande escala do saber e a organização de importantes redes informacionais para poder aproveitá-la. Trata-se de um conjunto de técnicas e práticas cujo princípio não é meramente mecânico-científico, mas também social-organizacional. Do mesmo modo que o crescimento da produ¬tividade nas economias industrializadas não resulta apenas do aumento quantitativo do capital ou da mão-de-obra no processo de produção, mas sim da “expressão empírica” da ciência e da tecnologia.
A verdadeira singularidade dessa semiose, todavia, reside essencialmente no seu modo particular de reformular os conceitos de tempo e de espaço e de conjugá-los ao aparato tecnico-tecno¬lógico que constitui, por sua vez, a base da configuração social, econômica e política da época contemporânea. Enquanto a mundialização, realidade econômica e militar pelo menos desde o século XVI, era um processo diacrônico de gestão espacial que implicava necessariamente a conquista territorial, a ocupação material e o controle físico do mundo; a especificidade intrínseca da globalização se inscreve, antes, na dimensão temporal e toma forma no princípio de instantaneidade e de imediatez das relações sociais, políticas e econômicas. Na sucessão das etapas de ampliação da noosfera ocidental e sua imposição ao resto do mundo, pois, a globalização se diferencia da mundialização por seu caráter primordialmente “infotemporal”. O conceito de globalização, portanto, não deve ser entendido em relação ao globo terrestre, mas sim no sentido da globalidade de uma ação, ou seja, a sua reali¬¬zação simultânea em múltiplos pontos do espaço. O que, obviamente, pressupõe uma total sincronicidade entre as várias cenas do processo e a sua moldagem num mesmo tempo único e universal.
Há, hoje, um relógio mundial, fruto do progresso técnico, mas o tempo-mundo é abstrato, exceto como relação. Temos, sem dúvida, um tempo universal, tempo despótico, instrumento de medida hegemônica, que comanda o tempo dos outros. Esse tempo despótico é responsável por temporalidades hierárquicas, conflitantes, mas convergentes (Santos, 1994: 30).
O relógio mundial hegemônico do qual fala Milton Santos é nada mais que o tempo mecânico tecnológico abstrato e vazio, expressão de um longo processo histórico e civilizacional de “desen¬caixe social” e desvinculação da dimensão temporal da espacial, iniciado com a racionalidade moderna ocidental e exa¬cerbado pelo desenvolvimento vertiginoso das tecnologias de comunicação (no sentido amplo). Seu marco estrutural, vivido como estado natural de nossa condição moderna, é o progressivo escamoteamento da dimensão espacial pela temporal e a definitiva reversão de nossos rastros existenciais dos subjetivismos locais para uma abstração relacional a-espacial.
David Harvey afirma, neste sentido, que “a objetivação e universalização dos conceitos de espaço e de tempo permitem ao tempo de aniquilar o espaço” (1993: 261). Por outro lado, ele propõe uma equação matemática que possibilita o cálculo do grau de compressão do planeta em função da velocidade tecnicamente possível para cobri-lo. O que significa que as distâncias entre diferentes pontos do espaço físico são inversamente proporcionais ao tempo necessário para atravessá-las, tornando, assim, virtual¬mente possível a utopia do mundo como “um lugar só”, na medida que o próprio das novas tecnologias de comunicação é, justamente, a instantaneidade. Um “um lugar só”, todavia, que corresponde, necessariamente à visão ocidental deste lugar, e cujo sentido para o resto do mundo não é nada mais senão uma total e abrupta desterritorialização de seu ser social pela semiose hegemônica das tecnologias ocidentais de sentido. Destacando esta violência semântica fruto da conjugação entre o instinto hegemônico do Ocidente e seu discurso tecnológico, David Bolter, no seu livro “Turing’man”, apreende o esforço de imposição do tempo-mundo como um tipo de “última fronteira” do Ocidente, a sua vitória ideológica final:
Assim como o espaço, o tempo é uma mercadoria provida pelo computador, um material para ser moldado tanto quanto possível aos fins humanos (...) Um relógio convencional produz somente uma série de idênticos segundos, minutos e horas; um computador transforma segundos, microssegundos ou não-segundos em informação. A enorme velocidade desta transfor¬mação põe a operação do computador em um universo de tempo que está fora da experiência humana. (...) O tempo eletrô¬nico é o ponto mais avançado deste desenvolvimento (do homem ocidental), a mais abstrata e matemática noção de tempo jamais incorporada à máquina; leva a escala de tempo muito além do limite inferior da percepção humana. Representa o triunfo final da perspectiva européia ocidental, quando o próprio tempo se torna uma mercadoria, um recurso para ser trabalhado tanto quanto um engenheiro de estruturas trabalha o aço ou alumínio (apud. Ianni, 1995: 175).
A radical transformação existencial dessa emergente “expe¬riência significativa da condição humana”, reside na substi¬tuição do conjunto de vivências locais que constituem a perspectiva do espaço real pela esfera cognitiva ocidental incorporada no imediato tempo-mundo real. O princípio motor da nova ordem tecnossocial em expansão, pois, é a velocidade; fundamento inaugural que se traduz pela imposição de um tempo-mundo único e universal e pela imediatez dos modos de regulação das relações sociais e de produção. As mudanças existenciais implicadas pela vivência dessa velocidade exponencial (tanto dos meios de comunicação e das trocas como das inovações tecnológicas) superam de longe, todas as transformações organizacionais experimentadas pela humanidade até hoje. Essa velocidade não é apenas um fator de mudança social ou política, mas sim uma mudança radical em si, e a sua importância estrutural é constitutiva do sistema social, econômico e político global em curso de auto-instauração, e não uma qualidade externa que vem a ele se agregar a posteriori.
Por outro lado, se a velocidade está na base do processo de globalização, este último tem ao mesmo tempo e sinergicamente, um efeito multiplicador sobre essa mesma velocidade. A conexão das diversas fontes de saber pelo mundo, a confrontação das expe¬riên¬cias, a acessibilidade à informação em tempo real e o decalque/recalque reflexivo das vivências efetivas, possíveis e virtuais, compõem uma imensa rede tecnoneuronial global responsável por uma verdadeira fissão intelectual e imaginária - fonte de velocidade ainda maior! Nela, o mundo não se apresenta mais de maneira plana e linear, mas sim caoticamente, à maneira de um hipertexto, sem início, fim, margens ou sentido de leitura único e predeterminado. Trata-se de um fenômeno inédito, de alcance virtualmente ilimitado, onde a velocidade produz uma maior velocidade, e as mudanças geram novas transformações até então insuspeitas. O curso da História toma uma curva de velocidade fatorial, onde a aceleração da vivência vira ela mesma um fator de uma maior aceleração do curso da História. Que, por sua vez, dá um novo impulso à sucessão das relações e dos fatos sociais... propulsando as idéias, os objetos e as pessoas numa espiral sem fim de distanciamento de si e de afastamento do real.
Essa velocidade, enquanto fator estruturante do atual processo de globalização, todavia, não deve ser entendida no sentido de uma equação matemática “tempo/espaço”, mas sim cognitiva “tempo/informação”. Não se trata da definição física clássica da noção de velocidade, relativa ao “tempo necessário para percorrer uma distância dada”, mas sim de uma acepção epistemológica nova: o tempo necessário para acessar ou gerar um determinado volume de informação. Sendo a distância percorrida (o espaço) não mais determinante nas relações de sentido, na medida em que as novas tecnologias de comunicação pressupõem, justamente, a instanta¬neidade das trocas e a subordinação dos localismos geográficos a um mesmo tempo-mundo único e universal1. O grau de velocidade de movimento não é mais mensurável em quilômetros ou em milhas, mas sim em débito de bytes e em fluxo de dados informa¬cionais. E a sua aceleração é relativa à densidade da “infos¬fera” (o conjunto dos sistemas de comunicação, tecnológicos ou huma¬nos, que englobam as estruturas econômicas, políticas, so¬ciais e culturais planetários), na qual é projetada nossa cons¬ciência histórica global em gestação. A importância revolu¬cionária dessa nova configu¬ração psicossocial é compa¬rável ao impacto que teve a invenção da imprensa ou da roda sobre nosso psiquismo, em termos de distanciamento do espaço e de ampliação de nossa capacidade de abstração.
A essa nova forma de aceleração do curso da História e de ampliação da esfera cognitiva ocidental, chamamos de “fator V2” (Velocidade/virtualidade): ponto crítico de velocidade a partir do qual se desencadeia um movimento de virtualização do mundo e das relações sociais; como quando o simulacro precede o real, o nega ou a ele se refere apenas por ricochete. A mesma idéia é desta¬cada por Milan Kundera, ainda que em termos poéticos, quando ele observa que “o grau de lentidão é proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente propor¬cional ao esquecimento”. Sendo entendido o esquecimento como desespacialização ou desenraizamento da memória, afastamento do real e perda dos referenciais necessários à sua ordenação.
O espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada permanece em nosso espírito, e não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço - aquele que ocupamos, por onde passamos, ao qual sempre temos acesso, e que em todo o caso, nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada momento capaz de reconstruir - que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamen¬to deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela categoria de lembranças - explica Maurice Halbwachs (1990: 143).
De certo modo, pode-se falar em “aderência da memória ao espaço” num trabalho de construção da marca subjetiva do indi¬víduo ou do grupo; já que, na verdade, nossos processos mnemô¬nicos são acionados e desencadeados por signos espaciais exter¬nos. Assim, gestos banais como manusear o livro equivalem a recons¬tituir e enriquecer a experiência ritualística existencial do grupo de origem ou das gerações passadas, do mesmo modo que o livro em cima da estante, mesmo depois de lido, continua a dialogar “proustia¬namente” conosco. Enquanto na biblioteca virtual, onde a relação espacial é substituída pela infotemporal, em vez de reconstituir a experiência ritualística existencial de enrai¬zamento num deter¬minado universo psicológico e ima¬ginário, o sujeito se deixa simplesmente envolver na esfera estética cognitiva fruto da racionalidade tecnológica ocidental sem relação obrigatória com seu devir comunitário direto. O mesmo pode ser dito de todas as formas organizacionais virtuais (empresa, universidade, bate-papo, etc.); o que, em termos giddenianos, significa um enfraquecimento da profundidade psicológica do sujeito, uma ameaça à sua segurança ontológica e equivale a um seqüestro da sua experiência pessoal e comu¬nitária. De fato, como observa Maurice Halbwachs,
nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lem¬bram-nos nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro (...) Não é tão fácil modificar as relações que são estabele¬cidas entre as pedras e os homens. Quando um grupo humano vive muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos exteriores (ibid.: 131).
Globalização, pois, é, antes de nada, um movimento de virtuali¬zação do mundo devido à imposição de um tempo universal e despótico que impede a multiplicação e a diversificação das expe¬riências históricas em tempos locais e variados, causando uma desorientação fundamental da realidade sensível e das relações de sentido, e uma perda de parâmetros existenciais para o sujeito definitivamente privado de seu “aqui e agora”.
0 comentários:
Postar um comentário