Um cérebro, duas línguas
A que falam os nossos pais
ou a do país onde vivemos? Pertence-nos mais uma que as outras? Em Macau
multiplicam-se os bilingues e tudo indica que isso é bom: para a RAEM e para o
cérebro de quem cá mora. Hoje é o Dia Internacional da Língua Materna.
Inês Santinhos Gonçalves
Amélia Pan nunca saiu da China. Não tem família
portuguesa e os primeiros amigos lusófonos surgiram só em 2007, quando começou
a estudar a língua. De Qingdao, terra natal, foi para a Universidade de Estudos
Estrangeiros de Pequim. No ano passado chegou a Macau e, apenas cinco anos
depois de aprender as primeiras palavras em português, a jovem de 23 anos
tornou-se tradutora do Tribunal de Última Instância.
O facto de ter aprendido a língua em idade adulta
faz com que Amélia não possa ser considerada bilingue. No entanto, não se pode
dizer que não tenha compensado o tempo perdido: além de ter vários amigos
portugueses com quem mantém uma conversa fluente e animada, a tradutora conhece
a maioria das expressões idiomáticas e ditados populares, é fã dos Deolinda e
domina mais linguagem jurídica que a generalidade da população lusófona. E como
se não bastasse, frequenta o mestrado em Língua e Cultura Portuguesa na
Universidade de Macau.
Além do mandarim e do português, Amélia fala
ainda inglês e, desde que chegou ao território, tem vindo a melhorar
significativamente o seu cantonês. Desde que as línguas tomaram um lugar
central na sua vida, admite sentir maior destreza mental e memória mais
aguçada, mas, confessa, também “o dobro do cansaço” ao fim de um dia embrenhada
em tradução de linguagem jurídica, com a qual sente ainda não ter suficiente
familiaridade.
O à-vontade com o idioma não surgiu sem esforço.
Começaram por ser mais de 20 horas semanais de português na universidade, com
aulas de leitura extensiva e laboratórios linguísticos. “No início achei muito
difícil porque as duas línguas são muito distantes”, conta.
Sendo que o pensamento é estruturado pela
linguagem, a passagem de um modelo chinês para um de matriz latina pode gerar
dificuldades. Apesar de a gramática chinesa ser relativamente fácil, o sistema
de escrita é logográfico, ou seja, os grafemas (sílabas) são logogramas
(símbolos) que denotam palavras ou morfemas (unidades gramaticais). Os
logogramas não transcrevem os sons da fala, mas significados, e cada grafema
pode ser pronunciado de uma forma completamente diferente de acordo com o
dialecto.
Amélia simplifica a explicação: “Em chinês não
temos muitas orações nem frases complexas. Às vezes tenho a sensação que os
portugueses falam ao contrário. Por exemplo, ‘quem é ela?’. Em chinês, se fizer
uma tradução literal, seria ‘ela é quem?’.
Estes desafios parecem, no entanto, ter sido
ultrapassados e a tradutora conta como agora pensa “em duas línguas
simultaneamente”. “Às vezes quando estou a falar com uma pessoa, seja em
chinês, seja em português, inconscientemente penso nas duas línguas. Por vezes
penso que tenho sono e faço-o em português”, revela.
Casimiro Pinto, tradutor e intérprete há mais de
20 anos, cresceu bilingue mas até começar a estudar para a profissão não
conhecia “nem um caracter de cantonês”. Hoje trabalha para o Comissariado
Contra a Corrupção.
Casimiro reforça a ideia de Amélia: “É tudo
trocado, o sujeito e o predicado. A grande dificuldade na tradução simultânea
tem que ver com isso, com as ordens gramaticais. Muitas vezes tem de se começar
pelo fim. Por exemplo, ‘onde vais?’ em cantonês é ‘vais para onde?’.
“Sinto, na minha própria experiência, que
realmente há uma vantagem, uma reacção mais imediata. Estou há muitos anos na
interpretação simultânea. A tradução pode ser feita com calma, mas o simultâneo
tem de ser logo, isso realmente ajuda uma pessoa a raciocinar com mais
rapidez”, descreve.
Cérebro eficiente
A memória, rapidez de raciocínio e capacidade de
multitasking que Amélia e Casimiro descrevem não são fruto do acaso. Elle
Bialystok, especialista em neurociência cognitiva, investiga os efeitos do
bilinguismo há cerca de 40 anos. Em 2010, a pesquisa valeu-lhe um prémio de 100 mil
dólares, ao vencer o Killam Prize. A sua tese é a de que os bilingues têm maior
capacidade de separar o joio do trigo no que toca a informação.
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