Podem a ética e a cidadania
ser ensinadas?
José Sérgio Carvalho
"Reparai: [ ... ] entre o semeador e o que
semeia há muita diferença: (..) o semeador e o pregador é o nome; o que
semeia e o que prega é a ação;
e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador,
ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida,
o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo.
[ ... ]
Hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem balas;
atroam, mas não ferem. O pregar que é falar,
faz-se com a boca; o pregar que é semear faz-se com a mão.
Para falar ao vento, bastam palavras;
para falar ao coração, são necessárias obras".
e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador,
ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida,
o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo.
[ ... ]
Hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiros sem balas;
atroam, mas não ferem. O pregar que é falar,
faz-se com a boca; o pregar que é semear faz-se com a mão.
Para falar ao vento, bastam palavras;
para falar ao coração, são necessárias obras".
Pe. Antônio Vieira
O ideal de uma educação que se empenhe em
formar e aprimorar a conduta dos jovens, de forma que esta venha a ser
fundada no respeito a certos princípios fundamentais da vida pública e
da dignidade do ser humano, - ou seja, o ideal de uma formação para o
exercício da cidadania e para a conduta ética -, está entre os objetivos
mais amplos e ao mesmo tempo mais consensuais da ação educativa
escolar. A lei 9394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, a ele consagra um lugar de destaque ao afirmar, logo em seu
artigo 2º que "A educação ..., inspirada nos princípios de liberdade
e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania
... ". Também em outros importantes documentos educacionais, como
as Diretrizes e os Parâmetros Curriculares Nacionais, essa meta da ação
educativa recebe um tratamento privilegiado. Mas não é só nos discursos
educacionais oficiais que o ideal de uma formação ética e para a
cidadania é considerado como uma meta prioritária. As propostas
pedagógicas das mais diversas instituições escolares - públicas ou
privadas -, os discursos dos professores e demais profissionais da
educação, os livros didáticos e até mesmo a mídia e os pais parecem
insistir na necessidade de que as instituições escolares se voltem com
grande ênfase e empenho para essa tarefa, já que dela parecem depender a
solidificação e a continuidade de um modo de vida ao qual, pelo menos
discursivamente, atribuímos um valor especial.
Nesse sentido, o engajamento das instituições escolares em favor de
uma formação geral que resulte no preparo para o exercício da cidadania e
se empenhe na promoção de uma conduta fundada em princípios éticos de
valorização dos direitos e deveres fundamentais da pessoa deixou de ser
um assunto restrito a especialistas e profissionais da educação para se
constituir em uma questão de interesse público. Não é raro que discursos
ligados a essas preocupações apontem para uma suposta crise de valores
que caracterizaria nossa sociedade e para a exigência de que renovemos
nossas práticas escolares e nosso currículo, de forma a priorizar e
enfatizar essas metas, freqüentemente tidas como secundárias ou
inexistentes em épocas passadas. Assim, por exemplo, fala-se de uma
"escola tradicional" 1
cuja principal preocupação teria sido não com a formação, mas com a
transmissão de informações. Fala-se ainda da necessidade de recorrermos
às novas teorias educacionais, com suas pretensas bases "científicas", a
partir das quais poderíamos desenvolver novas metodologias de trabalho
supostamente mais eficazes. Assim concebido, o problema da efetivação de
uma educação voltada para a formação ética e para o exercício da
cidadania aparece como um "novo desafio", cujo enfrentamento, por sua
vez, também demandaria o desenvolvimento de novas abordagens e
metodologias de ensino.
É possível que alguns aspectos desse diagnóstico e de suas pretensões
sejam verdadeiros. Como veremos há, de fato, elementos e desafios novos
nessa tarefa de educar os jovens para que sua conduta se paute em
princípios éticos que consideramos valiosos e para que o exercício da
cidadania tenha em sua formação um lugar privilegiado. No entanto, é
necessário ressaltar que a novidade não reside na identificação do
problema, nem em seu caráter urgente, mas possivelmente na abrangência
que ele tomou neste século. Já no século IV a.C., por exemplo, ao
refletir sobre problemas análogos aos que hoje temos em pauta,
Aristóteles escreveu:
"Os homens tornam-se bons e virtuosos
devido a três fatores, e estes são a natureza, o hábito e a razão. Ora,
a razão e a inteligência são os fins de nossa natureza. Por isso é
necessário preparar-lhes a formação e o cultivo dos hábitos. Já se disse
de que natureza devem ser os futuros cidadãos [ ... ]: o resto é obra
da educação. Realmente toda arte e educação esforçam-se por completar o
que falta à natureza. Ninguém porá em dúvida que ao legislador incumbe,
sobretudo, o cuidado da educação ... Pois o costume adequado a cada
constituição sói defendê-lo e, no começo, fundá-lo também ... E sempre o
costume melhor é causa de melhor constituição ... ( e) como o fim de
todo Estado é único, torna-se evidente que deve haver uma só e mesma
educação para todos, e que o cuidado e a vigilância desta devem ser
públicos e não privados ... É claro, então, que compete às leis regular a
educação e torná-la pública". 2
Assim como em Aristóteles, a preocupação com a formação ética e com a
preparação para a cidadania em instituições públicas de ensino foram
temas recorrentes em escritos de vários outros filósofos gregos, que
tentaram entender não só sua importância, mas sua natureza específica e
sua peculiaridade em relação a outras metas e formas de ensino. Nos
diálogos de Platão, por exemplo, essa discussão parte quase sempre de um
questionamento radical, em geral empreendido por Sócrates, e formulado
em termos que hoje podem nos parecer estranhos, pois ao invés de se
perguntar qual seria melhor maneira de se ensinar os jovens a terem uma
conduta ética no plano pessoal e na vida pública, pergunta-se sobre a
própria possibilidade dessa tarefa: "A virtude pode ser ensinada?". É
assim que Sócrates convida Protágoras a expor suas reflexões sobre o
assunto para, em seguida, a elas contrapor seus argumentos. Nessa, como
em várias outras passagens de obras clássicas, não se procura métodos de
ensino ou receitas pedagógicas. O que se procura é compreender a
natureza do problema que está em questão, ou seja, o que significa
ensinar a alguém uma conduta 3
tida como moralmente desejável ou, para colocar a questão nos termos
então vigentes, o que é ensinar a virtude a alguém e quais os limites
dessa tarefa.
Não é a pretensão deste artigo fazer uma análise retrospectiva das
diferentes concepções então vigentes ou em disputa. Simplesmente
procuraremos, a partir de certos excertos de obras clássicas, pensar
alguns problemas atuais do ensino voltado para a formação moral do
cidadão. Contudo, talvez não seja ocioso lembrar que o conceito de
virtude como excelência da conduta moral – a "areté" - era para os
gregos algo bastante distinto daquilo que hoje assim denominamos. 4
Mas, por outro lado, algumas de suas conclusões e os caminhos então
propostos para a abordagem do problema podem se mostrar bastante
relevantes em uma reflexão hoje.
Vale lembrar, por exemplo, que a discussão sobre a possibilidade do
ensino da virtude na conduta moral só emerge como um problema de
interesse geral entre os gregos em função da crescente democratização de
que sua sociedade foi objeto. A "areté" na Grécia arcaica não era
geralmente tida como algo "ensinável", uma vez que era concebida como
hereditária ou como uma "dádiva", um presente dos deuses. A "virtude" -
ou "excelência" - do guerreiro belo, bom e corajoso não era mero fruto
dos esforços educativos humanos e, por decorrência, não poderia ser
extensiva à totalidade da população. Ela era, na verdade, um símbolo
distintivo da aristocracia guerreira, que concentrava em si o comando e a
gestão da "polis", da Cidade-Estado. É somente a partir do momento em
que a gestão da "polis" passa a ser acessível a todo e qualquer cidadão,
5
a partir do momento que se cria o espaço público – que por pertencer a
todos, não é privilégio de ninguém -, que o problema da educação para a
virtude na conduta moral - na vida privada e na pública – torna-se
objeto privilegiado de debates e de antagonismos.
Tratava-se, então - como se trata hoje - de se perguntar como formar o
homem para que ele se torne um cidadão, um membro da coletividade que
possa tomar para si as responsabilidades e o desafio de criar leis e
princípios de convivência com o outro e com o público e conduzir-se de
acordo com eles. O problema se torna agudo quando não mais se trata de
formar alguns, uns poucos que devem deter o poder, mas de formar todos
os cidadãos para que, na igualdade que os marca em face da lei
(isonomia) e do direito à opinião (isegoria), eles possam participar
ativamente da construção e da gestão do espaço público e da elaboração e
legitimação dos princípios morais e legais que os conduzem.
Analogamente, o problema da formação moral no âmbito das instituições
escolares e o da busca de promoção de uma conduta fundada em princípios
e valores éticos que nos são caros para o exercício da cidadania
responsável é hoje muito mais aguda do que há algumas décadas. E isto
não se deve simplesmente ao fato, tão propalado quanto pouco provável,
de que as novas gerações são mais difíceis de se educar, de que nestes
tempos "pós-modernos" os valores nada têm a dizer aos jovens. De alguma
forma, esse diagnóstico sempre foi apresentado – inclusive na
antigüidade grega 6 –, o que nos deve levar, no mínimo, a duvidar de sua precisão e de sua utilidade.
Também no Brasil, enquanto a escola pública era privilégio de uma
elite, a preocupação e os problemas das instituições escolares com a
formação moral de seus alunos eram bem mais restritos. Um aluno
indisciplinado, cuja conduta moral era considerada inadequada aos
padrões das instituições escolares era simplesmente expulso, seja por
sua ação direta, seja pelo acúmulo de sucessivas reprovações que
atestavam sua incompatibilidade para com a vida escolar, suas normas de
conduta e seus procedimentos. Nesse sentido, às escolas cabia não só
formar os alunos, mas também selecioná-los, de acordo com suas
capacidades e desempenhos cognitivos e morais. Tratava-se, portanto, de
uma escola "aristocratizante", se assim podemos dizer. De uma escola que
selecionava os "bons alunos" e recusava-se a acolher a maior parte da
população. 7
Ao assim fazer, a escola, sem dúvida, se livrava de uma série de
problemas. Mas, por outro lado, não poderia aspirar, como hoje, a ter um
papel destacado na construção de uma cidadania plena, porque inclusiva e
democrática. A escola seletiva não era pública, mas privativa de uma
elite, de uma "aristocracia escolar".
Ora, negar à maioria da população um direito fundamental como o
direito à educação, é restringir o ideal de uma cidadania plena a
poucos. Em outras palavras, é instaurar uma "aristocracia", não fundada
no privilégio do sangue ou nas escolhas dos deuses, mas justificada num
ideal de desempenho escolar abstrato. Assim, colocar hoje a velha
questão: "a virtude pode ser ensinada – e deve sê-lo – a todos?" é,
novamente, se perguntar sobre a viabilidade e sobre a pertinência moral
de se estender a cidadania à totalidade da população, e não só em seus
aspectos formais e legais, mas na materialidade de políticas sociais.
Vemo-nos, pois, diante de um dilema que é análogo - embora não o
mesmo – àquele examinado pelos educadores e filósofos da Grécia
Clássica. Por isso gostaria de lhes propor que retomemos algumas de suas
reflexões. Não para tomá-las como respostas prontas aos nossos
problemas que, com efeito, são diferentes, mas para que delas possamos
partir em direção a uma reflexão sobre a natureza de problemas que hoje
temos se desejarmos que as instituições escolares contribuam para a
formação da conduta moral de seus alunos.
Antes mesmo de passar à análise de algumas das respostas clássicas à
questão formulada – "a virtude pode ser ensinada?" – pensemos sobre o
próprio sentido dessa formulação radical do problema. Por que, por
exemplo, Sócrates não pergunta a Protágoras como ensiná-la, mas
questiona a própria possibilidade de seu ensino? Não creio que Sócrates
duvidasse pelo menos do fato de que a conduta moral virtuosa autônoma
pudesse ser apreendida e nem mesmo de que a presença de um mestre ou
professor teria um papel destacado nesse tipo de empreendimento. Basta,
nesse sentido, recordar algumas de suas palavras no momento de sua
defesa no julgamento que o condenou à morte:
Outra coisa não faço, diz Sócrates,
"senão andar por aí persuadindo-vos,
moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas,
como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não
vem a virtude para os homens, mas da virtude vem os haveres e todos os
outros bens particulares e públicos . [ ... ] Não é conforme à natureza
do homem que tenha negligenciado todos meus interesses, sofrendo há
tantos anos a conseqüência desse abandono do que é meu, para me ocupar
do que diz respeito a vós, dirigindo-me sem cessar a cada um em
particular, como um pai ou um irmão mais velho, para o persuadir a
cuidar da virtude". 8
Ora, se o próprio Sócrates afirma que toda sua vida e sua missão se
concentram na exortação a um aprimoramento da conduta moral de seus
concidadãos, por que haveria ele de perguntar a Protágoras se a
"virtude" pode ser ensinada, ao invés de simplesmente debater sobre os
meios supostamente mais eficazes de fazê-lo? Provavelmente porque ao
formular a questão de tão forma radical Sócrates obriga o diálogo a
voltar-se para a própria natureza do problema moral e para a dificuldade
de seu ensino, evitando tratá-lo, assim, como uma mera questão de
recursos pedagógicos ou de procedimentos didáticos eventualmente comuns
às áreas ou disciplinas correntes.
Se a formação moral fosse exatamente análoga ao ensino de uma
disciplina específica - como a matemática - ou de uma capacidade técnica
- como a de construir barcos -, por que não há professores de
"solidariedade" ou cursos de "generosidade"? Por que a idéia de um
especialista em "caridade" nos soa absurdo? Vejamos como o próprio
Sócrates apresenta o problema que o inquieta:
"Cálias, se teus filhos fossem potros
ou garrotes, saberíamos a quem ajustar como treinador para lhes
aprimorar as qualidades adequadas; seria um adestrador de cavalos ou um
lavrador; como, porém, eles são homens, quem pensas em tomar como
treinador? Quem é mestre nas qualidades de homem e de cidadão? Suponho
que pensaste nisso por teres filhos. Existe algum ou não existe?
Existe sim, disse ele.
Quem é, tornei eu, de onde é? Quanto cobra?
É Eveno, ó Sócrates, de Paros, respondeu ele, por cinco minas
Fiquei, então, com inveja desse Eveno, se é que é senhor dessa arte e leciona a tão bom preço ... ". 9
A ironia mordaz e característica de Sócrates ressalta alguns
problemas graves e pouco analisados nas tentativas atuais de se tratar
da ética na formação dos jovens: quem é mestre nos valores que devem
reger a vida e a conduta dos jovens que educamos? Em que bases pode um
professor arrogar-se o direito de transmitir e de cultivar valores e
princípios que deveriam guiar a conduta de nossos alunos? E, por outro
lado, como podemos negligenciar justamente esse ponto tão crucial da
formação educacional?
Talvez uma das melhores respostas a esse questionamento seja a
proferida por um de seus adversários, Protágoras, provavelmente o mais
destacado representante dos sofistas na época de Sócrates. Ela parece
conter pelo menos alguns pontos fundamentais para a compreensão da
natureza do ensino e da aprendizagem de condutas morais e de princípios
éticos. Destaquemos alguns trechos desse notável diálogo a fim de sobre
ele tecer algumas reflexões que podem guardar interesse ainda hoje para
os educadores. Ao responder a Sócrates sobre a possibilidade do ensino
da excelência moral, Protágoras ressalta que:
"Desde que a criança compreende o que
lhe diz, a mãe, a ama, o preceptor e o próprio pai conjugam esforços
para que o menino se desenvolva da melhor maneira possível. Toda
palavra, todo ato lhes enseja ensinar o que é justo, o que é honesto e o
que é vergonhoso .... o que pode e o que não pode ser feito. ...Depois o
enviam para a escola e recomendam aos professores que cuidem com mais
rigor dos costumes do menino do que do aprendizado das letras e da
cítara. [ ... ] não te dás conta (Sócrates) de que todo o mundo é
professor de virtude, na medida de suas forças; por isso imaginas que
não há professores. Do mesmo modo, se perguntasses onde estão os
professores de grego [coloquial] não encontrarias um só" .10
Assim, para Protágoras, da mesma forma que iniciamos o aprendizado de
nossa língua através do contato vivo com todos aqueles que a utilizam, o
aprendizado de valores éticos, princípios e condutas morais resulta não
do contato com um especialista ou de um ensino à parte e específico,
mas da convivência difusa com todos os que nos cercam. Não há um
especialista em português coloquial, nem nos valores que regem nossa
conduta. Tanto a língua como os costumes de um povo são tradições
públicas,11
herdadas, transmitidas e cultivadas no próprio convívio social. É
evidente que de ambos os campos se derivaram estudos sistemáticos, aos
quais eventualmente podemos recorrer. No entanto, tanto o uso coloquial
da língua como as condutas fundadas em valores não são resultantes de
aplicações técnicas de um saber especializado, disponível somente
àqueles que a ele se dedicam profissionalmente.
Nesse sentido a educação ética não é uma tarefa de especialistas, mas
de toda a comunidade, não é fruto de um esforço isolado, mas de uma
ação conjunta e contínua de todo o entorno social. Disso decorrem pelo
menos dois desafios fundamentais para uma instituição escolar. O
primeiro deles é o caráter fundamentalmente coletivo desse tipo de
trabalho. O ensino de uma disciplina isolada, como a matemática ou a
história, exige e recorre a especialistas que pretensamente têm as
informações e capacidades que o habilitam a ocupar esse lugar
institucional de um professor. O trabalho educacional escolar passa pelo
ensino de disciplinas específicas, mas está longe de esgotar-se nele.
Não podemos tomá-lo, nas atuais condições históricas, como resultante de
uma relação pessoal isolada ou como se cada professor fosse um
"preceptor" isolado em sua relação pessoal com os alunos e a escola uma
simples somatória dessas relações individualizadas 12.
A escola é regida por uma série de valores, práticas e objetivos
institucionais decorrentes da peculiaridade de sua história e de sua
tarefa social de iniciação dos jovens no mundo público.
O êxito, maior ou menor, nessa tarefa de iniciação dos jovens no
mundo público dos valores e dos princípios éticos depende, pois, de um
esforço conjunto de toda instituição, no qual cada professor ou
profissional da educação, além de sua função específica, representa um
agente institucional, comprometido com uma série de valores que se
traduzem em responsabilidades e atitudes educativas próprias ao mundo
escolar. Como ressalta Arendt
"... o educador está aqui em relação
ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir
responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou
abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa
responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está
implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um
mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a
responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é
preciso proibi-la de tomar parte em sua educação".13
É evidente que a "responsabilidade pelo mundo", a que se refere
Arendt, não é uma responsabilidade individual. Ela decorre do fato de
que as gerações mais velhas, às quais pertencem os professores, são
simultaneamente produtos e produtoras do mundo - do conjunto das
heranças culturais de um povo - cujos conteúdos, linguagens e
procedimentos legamos às gerações seguintes através da educação. A essa
responsabilidade coletiva não podemos escapar, pelo menos se tivermos
como ideal de vida - ou no mínimo como escolha profissional - ser
professores e atuar em instituições escolares.
Uma segunda possível decorrência da visão exposta por Protágoras é o
reconhecimento de que a escola é apenas uma dentre as várias
instituições sociais com as quais os alunos convivem e a partir das
quais seus valores e atitudes se formam. A família, os amigos, as
igrejas e mesmo sua exposição à mídia, concorrem para a formação de
valores que, por vezes podem ser coincidentes, mas muitas vezes entram
em conflito aberto ou velado com os interesses e valores próprios do
mundo escolar. Disso poderíamos inferir que seria pequeno o papel das
instituições escolares? De forma alguma. No mesmo diálogo, algumas
linhas a seguir, Protágoras prossegue expondo um quadro que nos
interessa ainda mais de perto, pois focaliza o problema da formação
ética em relação à ação docente:
" ... quando o aluno começa a ler e
começa a compreender o que está escrito ... dão-lhe ... a ler obras de
bons poetas ... prenhe de conceitos morais ... do mesmo modo procedem os
professores de cítara; envidam esforços para deixar temperantes os
meninos e desviá-los da prática de ações más".14
Assim, a formação moral é resultante, para Protágoras, de um esforço
educativo que não se separa dos próprios valores procedimentos
peculiares às instituições escolares e às disciplinas e conteúdos nelas
ensinados. Ao ler os "bons poetas", o aluno entra em contato com os
feitos e personagens que merecem louvor ou censura, porque foram
corajosos ou covardes, por exemplo. Ao se iniciarem na literatura de um
povo, os alunos entram em contato com os dramas humanos e os valores
neles envolvidos, com sentimentos e ações fundados na solidariedade e no
egoísmo, no respeito ou no desrespeito ao outro. Aprendem, assim, a
admirar ou desprezar condutas e nelas se espelhar em suas angústias e
decisões.
Ao "aprenderem a cítara", aprendem também o valor da harmonia. Não
como simples resultado de uma exposição verbal do professor acerca de
sua importância, mas por meio de seu esforço através do próprio ensino
da música. Nesse sentido, o ensino de valores fundamentais não é objeto
de um momento especial, de uma preocupação pontual ou de simplesmente de
uma "tematização transversal", à qual se expõe o aluno, como a um ponto
de um programa. Ao contrário, os princípios e valores característicos
da instituição escolar estão contidos nos próprios conteúdos aprendidos,
nas próprias formas de conhecimento ensinadas e, portanto, se encarnam
nas atividades e práticas docentes que o materializam como conteúdos
didáticos. Assim, o cultivo de valores fundamentais pode - e deve -
estar presente no desenvolvimento de cada uma das atividades e
disciplinas de nosso ensino.
Ao ensinar uma simples composição escolar, por exemplo, um professor
pode – ou não – buscar desenvolver em seus alunos o valor da precisão,
do capricho ou do rigor. Para isso é possível que ele discorra sobre sua
importância, mas seguramente não é sequer necessário. É possível
ensinar alguém a ser caprichoso, sem necessariamente dizer-lhe que o
capricho é um valor e que ele deve cultivá-lo, assim como é possível
ensinar alguém a gostar de música, sem que lhe digamos "goste de música,
ela é uma expressão importante da cultura humana".
Analogamente, ao ensinar uma teoria científica podemos fazê-lo de
forma dogmática ou, ao contrário, esforçando-nos por apresentar as
razões que sustentam as conclusões, discutindo-as e justificando-as aos
nossos alunos. Neste caso estaremos, na prática, iniciando nossos alunos
nos princípios fundamentais que historicamente têm caracterizado os
ideais subjacentes às práticas das comunidades científicas e, em grande
parte, da própria instituição escolar.
Ao procurar caracterizar a ciência como uma forma particular de
conhecimento, o filósofo Karl Popper, por exemplo, afirma que a tradição
científica
"não se origina numa coleção de
observações ou na invenção de experimentos, mas sim na discussão crítica
dos mitos, das técnicas e práticas mágicas. [Ela] se distingue da
tradição pré-científica por apresentar dois estratos; como esta última,
ela lega suas teorias, mas lega também com ela uma atitude crítica [ ...
]. As teorias são transferidas não como dogmas mas acompanhadas por um
desafio para que sejam discutidas e se possível aperfeiçoadas. Essa
tradição é helênica e remonta a Tales, fundador da primeira escola a não
se preocupar fundamentalmente com a preservação de um dogma".15
Nesse sentido, o cultivo de um princípio, como a valorização do
espírito crítico e da análise de concepções alternativas não se
desvincula do próprio ideal de iniciação nas ciências. Ao contrário, um
ensino que o incorpore respeita não só um ideal caro à ciência, como um
procedimento fundamental à democracia e à própria instituição escolar.
Pois, como afirma Scheffler,
"o ensino poderá, certamente,
proceder mediante vários métodos, mas algumas maneiras de levar pessoas a
fazerem determinadas coisas estão excluídas do âmbito padrão do termo
'ensino'. Ensinar, no seu sentido padrão, significa submeter-se, pelo
menos em alguns pontos, à compreensão e ao juízo independente do aluno, à
sua exigência de razões e ao seu senso a respeito daquilo que constitui
uma explicação adequada. Ensinar a alguém que as coisas são deste ou
daquele modo não significa meramente tentar fazer com que ele o creia; o
engano, por exemplo, não constitui um método ou modo de ensino. Ensinar
envolve, além disso, que se tentarmos fazer com que o estudante
acredite que as coisas são deste ou daquele modo, tentemos, ao mesmo
tempo, fazer com que ele o creia por razões que, dentro dos limites de
sua capacidade de apreensão, são nossas razões".16
É obvio que tanto Scheffler quanto Popper não se limitam a dar uma
descrição de "ciência" e de "ensino". Com suas concepções eles veiculam
certos valores que, segundo suas concepções, devem animar cada uma
dessas instituições sociais: a ciência e o ensino escolar. Mais
importante ainda, ambos sugerem que o aprendizado desses princípios e
valores não se dá pela sua simples veiculação verbal. Ao contrário, sua
transmissão e preservação dependem das práticas sociais de seus agentes,
da consciência que estes têm dos princípios que as animam e do
significado de seus esforços no sentido traduzi-las, aplicá-las e
mantê-las vivas. O exemplo comparativo entre os princípios da atividade
científica e do ensino escolar não foi aleatório.
A crítica ao dogma, a apresentação e discussão pública das razões são
valores subjacentes e fundamentais tanto à ciência e à educação escolar
como à democracia. A melhor forma de cultivá-los e transmiti-los como
um dos mais importantes legados culturais da humanidade é torná-los
presentes não só em nossas palavras, mas em nossas ações como
professores e profissionais da educação. Por essa razão, eles são um
exemplo frisante da idéia de Aristóteles de que a conduta moral não
decorre da simples consciência de certos princípios, nem da posse ou da
enunciação de imperativos e máximas morais, mas é resultante de um
constante exercício prático neles fundado:
"A virtude [ ... ] recebe do ensino a
geração e o desenvolvimento, por isso necessita de experiência e tempo;
a ética provem do hábito [ ... ] portanto as virtudes não se geram por
natureza ou contra a natureza, mas se geram em nós, nascidos para
recebê-las e aperfeiçoando-nos mediante o hábito [ ... ]nós [as]
conseguimos pela ação, porque, como nas outras artes, o que é preciso
primeiro aprender para fazê-lo, aprendemos fazendo-o, tal como nos
tornamos construtores construindo, ou tocadores de cítara tocando. Assim
também, realizando ações justas ou sábias ou fortes tornamo-nos sábios,
justos ou fortes".17
Ao que acrescentaria que é sendo um professor justo que ensinamos o
valor e o princípio da justiça aos nossos alunos, sendo respeitosos e
exigindo que eles também o sejam é que ensinamos o respeito, não como um
conceito, mas como um princípio de conduta. Mas é preciso ainda
ressaltar que o contrário também é verdadeiro, pois se as virtudes, como
o respeito, a tolerância e a justiça são ensináveis, também o são os
vícios, como o desrespeito, a intolerância e a injustiça. E pelas mesmas
formas.
Uma pequena nota final:
Em algumas ocasiões em que tive a oportunidade de apresentar este
texto a professores do ensino fundamental e médio surgiu uma série de
questões tão inevitáveis quanto difíceis de serem respondidas: quais são
esses valores cujo cultivo deve ser a meta das instituições escolares?
Como escolhê-los dentre a multiplicidade de visões éticas presentes em
nossa sociedade? Que ações são incompatíveis com esses princípios?
É evidente que esses são problemas que escapam às nossas preocupações
iniciais, mas cuja urgência - e a concretude - desaconselham tanto as
respostas fáceis, porque excessivamente abstratas, quanto a atitude,
igualmente fácil, de ignorá-los. Vale, contudo, apenas ressaltar um
conjunto breve de observações a esse respeito.
A primeira delas é que, por um lado, o próprio ordenamento jurídico
de nosso país, materializado em nossa Constituição Federal, aponta para
certos princípios éticos, como a solidariedade, o cultivo da liberdade
de opinião e discussão, a solidariedade, bem como uma série de direitos
econômicos e sociais, como fundamentais para a vida em sociedade. A
instituição escolar, deve, portanto, não só reconhecê-los como
princípios éticos fundamentais como promovê-los em suas ações e
discursos, já que ela se filia a um ideal de conduta apontado como
elemento programático comum à nação na qual ela pretende iniciar seus
alunos. Mas também é evidente que o problema não se encerra nesses
grandes princípios gerais. Até porque sua simples aceitação não resulta
num curso de ação claro e inequivocamente operacionalizável. 18
Nessa, como em tantas questões polêmicas ligadas aos valores de uma
sociedade, talvez sequer faça sentido procurar apontar caminhos prontos e
soluções gerais. Até porque esse tipo de empreendimento revelaria uma
prepotência descabida, como vimos por ocasião da própria fala de
Sócrates. Isso não nos impede, no entanto, de pelo menos sugerir que a
gravidade do problema e a urgência de seu encaminhamento recomendam
muito mais o convite a uma discussão séria dos princípios morais que
devem guiar a ação docente do que a propagação de "verdades últimas" e
"receitas infalíveis". Nesse sentido, parece-me que cabe à universidade,
bem como aos órgãos governamentais, não a apresentação de "visões
iluminadas", mas um esforço elucidativo que torne patente a natureza dos
desafios que temos. Somente uma comunidade escolar, na concretude de
seus desafios cotidianos, poderá estabelecer de forma significativa seus
parâmetros de ação ética, por meio de uma discussão constante dos
princípios gerais de nossa cultura e dos compromissos históricos de
nossas instituições de ensino.
Notas:
* O título deste artigo, bem como a referência ao diálogo Protágoras, inspira-se no artigo de Gilbert Ryle, Can Virtue be taught?, que também desencadeou o programa de um curso de Filosofia da Educação I, ministrado no primeiro semestre de 2000 aos alunos do primeiro ano de Pedagogia da FEUSP. A eles gostaria de agradecer e dedicar estas reflexões, em grande parte desenvolvidas nessa ocasião e posteriormente formalizadas.
1- O termo "escola tradicional", embora recorrente nos discursos educacionais é de escasso valor descritivo. Ao reproduzi-lo só temos em mente a apresentação do argumento, tal como usualmente ele se explicita, sem entrarmos no mérito das complexas questões subjacentes. Para uma análise mais precisa da confusão a que esse termo tem levado, veja-se o capítulo 3 da obra Construtivismo: uma pedagogia esquecida da escola
2 - Aristóteles. Política. Livros VII e VII. In The Great Books if the Western World. Vol. 9 Pp.541-3.
3 - Como no plano das ações morais não nos referimos apenas a comportamentos mecanizados, mas a decisões de princípios que se materializam em escolhas e ações, preferimos utilizar o termo "conduta" ao invés de "comportamento".
4 - É evidente que o sentido do termo "areté" varia grandemente ao longo da história do pensamento grego, como assinalam Jaeger (1989) e Peters (1974). Como acabamos de ressaltar, não nos interessa aqui a complexa e fascinante história desse conceito. Simplesmente gostaríamos de partir de algumas dessas discussões para refletir sobre possíveis descaminhos tomados por esse tipo de discussão nos discursos educacionais brasileiros.
5 - Como é amplamente sabido, nem todo habitante de Atenas era cidadão ateniense. Somente os homens livres e maiores de 21 anos se enquadram nessa categoria que, portanto, excluía escravos, estrangeiros, mulheres.
6 - Veja-se a esse respeito, por exemplo, a comédia As nuvens, de Aristófanes.
7 - Basta lembrar, por exemplo, que até a unificação do exame de admissão, na década de 70, somente 1 em cada 9 alunos tinha acesso ao antigo ginásio, que hoje corresponderia à 5ª série do ensino fundamental.
8 - Ambos extraídos de Platão, A defesa de Sócrates. São Paulo, Abril, 1978, p. 21.
9 - Ibidem, p. 14.
10 - Platão, Protágoras. p. 244 e 246 (grifos nossos).
11 - O termo "tradição" por vezes tem uma conotação negativa, que o identifica com algo arcaico, em desuso ou mesmo dogmático. Não é esse, evidentemente, o caso neste contexto. Uma 'tradição pública" - como a língua portuguesa - é um saber de um povo, de uma nação ou civilização no qual os novos são iniciados. Trata-se, portanto de uma realização histórica que herdamos, incorporamos e inovamos, de um legado cultural específico, cujos critérios de uso e avaliação são públicos e sujeitos a constantes transformações, como as línguas, as ciências, as artes etc. .
12 - Cf. Indicação CEE 7/2000
13 - Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1978. P. 239.
14 - Platão. Protágoras.
15 - Karl Popper. Conjecturas e Refutações. Brasília, UnB, 1982. P. 80/ (grifos nossos).
16 - Israel Scheffler. A Linguagem da Educação. São Paulo, Edusp/Saraiva, 1978, pp.70-1.
17 - Aristóteles. Ética a Nicômaco. Brasília Unb.
18 - Ryle, comentando a freqüente ilusão de que a comunhão de princípios basta para uma ação eficaz, ressalta com ironia que "não nos tornamos um general astuto pelo simples fatos de compartilharmos os princípios de Clausewitz. (cf. tese). (Porto Alegre, Artmed, 2001), no qual abordamos mais detidamente esse problema.
BIBLIOGRAFIA
Arendt, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo, Perspectiva, 1978.Aristóteles. Ética a Nicômaco. Brasília, Unb, 1982.
_________. Política. In: Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1976.
Azanha, J. M. Proposta pedagógica e autonomia da escola.
Brasil. Sec. De Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais; apresentação dos temas transversais, ética. MEC/SEF 1997.
Platão. Apologia de Sócrates. In: Col. Os Pensadores. São Paulo, Abril, 1976.
_____. Protágoras. In: Diálogos. Difel.
Popper, K. Conjecturas e Refutações. Brasília, Unb, 1986.
Peters, R. Educação como iniciação. In Archambault (org.). Educação e análise filosófica. São Paulo, Saraiva, 1976.
Ryle, G. Can virtue be taught? In Dearden et alli. (Orgs.) Education and the development of reason. Londres, RKP, 1972.
Scheffler, I. A linguagem da Educação. São Paulo, Edusp/Saraiva, 1978.
* Professor da Faculdade de Educação/ Universidade de São Paulo
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