MOIMÓRIAS
Um projeto voltado às Memórias.
Vera Brandão
Pedagoga. Mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP
Chegamos devagar e, silenciosamente, entramos na penumbra, com respeito e curiosidade, em um espaço desconhecido, guiados por um som... tictac, tictac, tictac,Tictac,Tictac.TICTACTICTACTICTAC, que reinou absoluto por longos minutos.
Nossos olhos acostumados, pouco a pouco, à penumbra já vislumbravam um cenário.
Em primeiro plano uma antiga máquina de costura Vigorelli, ao fundo um grande relógio tictaqueava e imperava no ritmo tempo. Cronos.
Um ruído leve á esquerda da cena e uma porta se abre vagarosamente.
Ele chega, movimentos lentos, medidos... Nas mãos um jornal. Após poucos momentos de leitura, com um gesto de desprezo ou enfado, coloca o jornal de lado. Sempre a mesma coisa!
Varre o chão.
Volta-se então à máquina de costura, anda a sua roda como que reconhecendo a parceira de jornada, e com gestos precisos abre as gavetas, explora os conteúdos...
Um pedaço de pano e começa sua limpeza / carinho...
Que gestos de ternura e amor mais significativos para os que conhecem as profissões artesanais! Alfaiates, costureiras, e outros artesãos que usam as mãos para costurar sonhos e ganhar o pão!
Linhas que costuram vidas e significados.
No rádio, companheiro das longas horas de trabalho, procura uma notícia, um som!
Sim, uma música! Vivaldi! As Quatro Estações! E o tecido e a tesoura em suas mãos dançam! Tudo vibra, encobrindo o inapelável som que marca a passagem dos tempos.
Senta à máquina, a costura tem início...
Mas, o que tem na caixinha de música retirada de uma das gavetas?
Um espelho? Ele pensativo olha. O que vê?
O imaginário do artista se materializa e irrompe dançando levemente. Um terno elegante enlaça um singelo vestido branco... Vestido de noiva?
Quem vem lá? Que sonho é este, guardado nesta caixinha? Que som é este que o embala? Dança, dança, dança...
Em que mundo você está pequeno e velho alfaiate? Até onde você foi com seus sonhos e o que trouxe de tão longe?
Á realidade se restabelece chamado pelo som prevalente do tempo real...TICTACTICTAC
Que pena! Nos sonhos o tempo é outro...Looongo, leeeento! Kairós.
Acho que nem existe.
Mais uma vez, guarda suas coisas – a caixinha, a tesoura, o tecido, o paninho de limpeza – desliga o rádio.
O artista faz uma pausa na construção de sua obra-vida, fecha seu ateliê, mas deixa em cena, latente, a potência que faz de todo trabalho humano uma obra de arte!
A magia do momento, lentamente, se desfaz.
Resta o mesmo som do tempo marcado! Implacável!
Saímos comovidos, pensativos, leves... Enlaçados como na dança dos sonhos.
No caminho de volta percebemos que, sem querer!!! trouxemos conosco a magia que julgávamos ter terminado - o alfaiate e sua caixinha de sonhos!
Que bom! Um sorriso ilumina a noite!
O que será que vamos costurar-sonhar?
Foram estes os sentimentos despertados pela apresentação do Projeto Moimórias.
E o que de mais significativo, despertar sentimentos, em um projeto que propõe uma revisita ao passado dos antigos artesãos? Memórias, em seu trabalho nos tempos, nas quais se entretecem cotidiano e imaginário, sonho e realidade.
A figura entalhada e conduzida no precioso trabalho das mãos de jovens artistas, sensibilizados pela descontinuidade no tempo de vida, característica da sociedade na qual vivemos.
Tempo Cronos, datado e acelerado, que exclui os que com esforço e trabalho chegaram ao envelhecimento, desconsiderando o tempo vivido – Kairós – no trabalho das mãos.
Saberes-fazeres únicos, como este boneco de madeira. Ruptura nos tempos?
O projeto em processo aponta, na penumbra, uma luz. Pequena ainda, bruxuleante, mas com potencial para iluminar novos caminhos, sensibilizar muitos para um exercício de olhar-sentir os muitos modos de construir a vida-trabalho e viver a vida e, nela, a velhice.
Na mirada ao nosso espelho, do que temos medo?
No projeto Moimórias, olhares jovens, cúmplices, enxergam nos velhos companheiros da jornada humana parceiros de caminhada.
Enxergam, e querem partilhar, a arte de viver!
Esperança!
Vera Brandão
veratordino@hotmail.com
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