Para tanto, iniciaremos nossa análise relatando a história de vida escolar de cada um dos sujeitos da pesquisa, principalmente no que se refere à filosofia educacional para surdos que norteou tal processo dos mesmos.
Começando por F., de 18 anos, destacamos que esta apresenta surdez profunda congênita . Os atendimentos fonoaudiológicos de F. foram iniciados tardiamente, aproximadamente entre 4/5 anos.
A escolarização de F. iniciou-se aos 8 anos, tendo esta freqüentado a escola especial por quatro anos. Aos 12 ingressou na escola regular de ensino. Ambas as escolas - especial e regular - que F. freqüentou tinham como filosofia educacional para surdos o Oralismo.
Vejamos a transcrição de um texto escrito por F., direcionado à uma intérprete, no qual ela relata, em forma de bilhete, como seria seu dia escolar na segunda-feira.
Porque Amanhã todo já trabalho mais hora rápido 6 FLAVIANA Assim você corre para junto só uma bom Professora Feliz rir falou amigo tem papel cada muito gosta de Deus Flaviana não aluno falou acabou aluno já casa rapido.
Ao observarmos o texto de F., podemos perceber todas as dificuldades estruturais de linguagem escrita do aluno com surdez que destacamos em Fernandes (1990), no início deste trabalho.
Uma pessoa que não conheça as peculiaridades da escrita de alunos com surdez, especificamente que não conheça a escrita da referida aluna, não compreenderia o bilhete da mesma, ao contrário, acreditaria ser um amontoado de palavras desconexas, sem significado algum.
F. diz, em seu bilhete, que amanhã (segunda-feira) todos os alunos de sua turma irão fazer os trabalhos (atividades) de aula rapidamente (talvez uma competição freqüente entre os alunos de sua turma), para ver quem termina primeiro, colocando-se como a 6a na ordem. Diz, ainda, que a professora fica feliz com quem termina antes, considerando (percepção da aluna) o terminar primeiro como qualidade do bom aluno. Além da mensagem principal, ela comenta que falou com alguns amigos, através de papéis escritos (bilhetes), que gosta de Deus. Finalmente, escreve que algum aluno teria falado que quem acaba antes vai para casa mais rápido, e ela não estaria neste grupo de alunos. Portanto, justifica-se o seu desejo de ser uma das primeiras a terminar as atividades escolares, o mais rápido possível.
Percebemos que o texto dessa aluna é incompreensível na estrutura de escrita do Português que conhecemos, onde usa-se, no mínimo, uma seqüência simples de SUJEITO-VERBO-OBJETO. Apesar de, em alguns momentos, ela tentar utilizar de todos os recursos que conhece da língua majoritária (tais como letras maiúsculas, pontuação, flexão temporal de verbos, dentre outros), esta se perde na forma correta de inseri-los no texto.
O texto de F. reflete uma grande incompreensão acerca da linguagem que lhe cerca e da língua utilizada em seu dia a dia, tornando seu registro indecifrável, pela maioria das pessoas, e por ela mesma, pelo fato de não ter segurança em como fazê-lo.
Ao escrever, a aluna lança mão de todos os aspectos que, visualmente, ficaram registrados em sua memória (via imitação), mesmo não os compreendendo, e insiste em fazer um bilhete, já que o percebe como uma prática social de escrita bem aceita socialmente. Percebemos, assim, que mesmo sem saber utilizar, corretamente, os instrumentos primordiais para a leitura escrita, a aluna conhece a importância social de fazê-lo.
Tendo sido inserida num contexto diário de pura oralização, tanto familiar quanto escolar, F. foi impossibilitada de construir e compreender conceitos e práticas lingüísticas que lhe capacitassem para uma comunicação efetiva e fluente, na forma gestual, oral ou escrita. A conseqüência dessa prática inconsistente é a difícil compreensão de sua oralização e de suas produções escritas, como vimos no modelo que foi utilizado.
Podemos dizer que as palavras de Gotti (1997, p. 32) reforçam e complementam com exatidão o equívoco lingüístico cometido com F., quais sejam:
A leitura orofacial é um auxílio à comunicação e não um substituto da audição. É um instrumento interpretativo, inexato e por isso mesmo “ambíguo”, uma vez que grande quantidade de fonemas que “soam” diferentes ao ouvido normal, “aparecem” iguais nos lábios de quem as pronuncia, e outros nem mesmo “aparecem”.
Assim, ao promover a oralização do sujeito com surdez, exclusivamente para possibilitar sua integração no mundo oralizado e sonoro de ouvintes (como ocorreu com F., no caso apresentado), percebemos que sem a utilização de uma língua adquirida através da interação, a qual determine a formação do pensamento, estaremos, na realidade, intensificando essa diferença lingüística, pois esses indivíduos, apesar de se esforçarem para falar o Português, provavelmente sofrerão dificuldades cognitivas, sociais e emocionais.
O segundo aluno, cuja história de vida passamos a relatar, é B. de 15 anos.
B. apresenta surdez profunda adquirida, cujas causas baseiam-se nas seqüelas deixadas pela Meningite Meningocócica contraída aos 12 meses de idade .
Todas as fonoaudiólogas que atenderam B. eram adeptas do Oralismo, tendo o aluno conhecido a língua de sinais anos depois, através do contato com surdos adultos.
Sua escolarização formal iniciou-se em uma escola especial, aos 4 anos, tendo freqüentado a mesma durante sete anos, a qual baseava-se no modelo da Comunicação Total. Aos 11 anos, B. ingressou na escola regular de ensino, onde as metodologias utilizadas representavam um misto do Oralismo com a Comunicação Total (e ainda representam, pois o aluno continua na mesma escola).
Ao entrevistarmos a mãe de B. e o próprio aluno, fomos informados de que a utilização da Comunicação Total facilitou o relacionamento e a comunicação familiar, porém, o aluno relatou que se sentia muito confuso na escola com expressões criadas que dificultavam uma compreensão clara e objetiva dos conteúdos, além da falta de consonância entre os sinais usados em casa e na escola. O uso da datilologia (alfabeto manual) era mais freqüente devido a facilidade de compreensão pelos professores e pais.
Após uma apreciação geral do histórico de vida de B. passemos ao texto escolhido para análise. Trata-se de uma carta de contexto religioso enviada a uma intérprete de LIBRAS.
Oi tudo bom L.
Eu sou muito feliz você.
Espírito Santo visitar sua vida.
Deus dar sua dons própria surdo mundo.
Quando L. chegou igreja. Você viu dois surdo B.-D. Verdade.
Passado muito difícil para mim Por causas. Não tem interpretas. Agora Deus prepara já começou Graça Deus.
Eu te amo L. realidade.
Eu nunca esqueça Você Por que amo Verdade.
Toque Silêncio amo você
Abaçou pra L.
Beijo Boca.
O texto de B. traz diferenças significativas se for comparado ao texto de F.que analisamos anteriormente.
B. procura escrever dando um corpo inteligível a sua carta, marcando o início (com os cumprimentos e o começo da mensagem desejada), o meio (com os argumentos de sustentação da mensagem) e o fim (com o fechamento da mensagem desejada e os cumprimentos finais).
Percebemos que em seu texto também ocorrem equívocos quanto à estruturação de sua escrita no que concerne ao uso de alguns elementos de ligação, flexão do verbo, ao uso da letra maiúscula fora de hora (talvez como marca ou supercorreção), disposição de frases e/ou parágrafos, dentre outros. No entanto visualizamos um avanço muito grande com relação à escrita do aluno anterior.
Tendo sido educado num modelo mais voltado para a Comunicação Total, B. pôde contar com o melhor aproveitamento de seu potencial visual e gestual, aliado ao grande apoio familiar.
Mesmo com os grandes avanços percebidos em sua escrita, devemos considerar que, ainda assim lhe falta uma linguagem efetiva, visto que a Comunicação Total baseia-se num conjunto de recursos e não na fluência de uma língua.
Ao termos analisado o texto de B., percebemos que a Comunicação Total, como filosofia de educação de sujeitos com surdez, demonstrou uma eficácia maior em relação ao Oralismo, levando em consideração aspectos importantes do desenvolvimento. No entanto, esta não utiliza a língua de sinais em sua forma plena e passa a criar recursos artificiais para facilitar a comunicação, tendo como conseqüência a dificuldade de comunicação entre sujeitos com surdez que dominam códigos diferentes da língua de sinais.
Finalmente, apresentaremos a história de vida de K. de 10 anos.
A aluna em questão apresenta surdez severa à profunda congênita, decorrente da Rubéola contraída , pela mãe, através de um familiar .
A aluna freqüenta o atendimento fonoaudiológico desde a descoberta da surdez.
K. freqüentou o ensino especial durante quatro anos, especificamente dos 5 aos 9 anos, sendo esta baseada num modelo de transição do Oralismo para a Comunicação Total. Posteriormente, a aluna ingressou em uma escola regular que tem se empenhado no sentido de promover um ensino voltado para o Bilingüismo. Podemos dizer que essa escola encontra-se num modelo transitório de Comunicação Total para o Bilingüismo.
Iremos utilizar dois textos de K., escritos em momentos diferentes de sua escolarização, os quais mesmo sendo produções de texto simples, nos apresentam diferenças estruturais consideráveis.
O primeiro é uma produção de texto realizada logo que K entrou na escola regular. Esta foi feita com base em leitura de imagem e uma incentivação escrita como pretexto.
Era uma ves um jacaré com conversar. Veio muito veio. A tartaruga estava com Triste. O jacaré começou Fala igual O Bico Do papagaio muito levado.O jacaré pediu De sculpa.
Este outro texto foi produzido após dez meses de freqüência de K. no ensino regular e se trata de uma produção feita a partir de imagens ordenadas pela própria aluna.
A pescaria.
O Alex foi pescar peixe na lagoa.
O menino ficou alegre porque pescou um peixe muito bonito e grande.
Ele assou o peixe para comer.
O peixe estava muito gostoso!
O primeiro texto de K. traz características muito semelhantes ao do aluno B. com relação às peculiaridades lingüísticas marcadas pela omissão de elementos e palavras importantes para o corpo textual, ou mesmo pelo uso equivocado de outros recursos.
No entanto, o segundo texto apresenta um amadurecimento muito grande com relação ao uso de conectivos ou mesmo flexões verbais, tão difíceis de serem compreendidas pelo sujeito com surdez.
O processo de aprendizagem de K. foi efetivado pelo uso sistemático da língua de sinais, sobretudo para a organização do pensamento e para a compreensão de conceitos, mesmo havendo grandes diferenças entre a estrutura da LIBRAS e a estrutura do Português.
Quando o aluno com surdez é mediado adequadamente e tem a oportunidade de organizar seu pensamento via sinais (que é sua língua primeira e que deve ser o ponto de partida para a aprendizagem da segunda, o Português), este tem a possibilidade de produzir um texto bem estruturado e compreensível para os leitores que por ventura venham a lê-lo, cuja prática de escrita vai se aperfeiçoando com a mediação dos ouvintes, não de forma mecânica, mas interativa.
O aluno com surdez, inicialmente, agirá por imitação, num caráter prospectivo de que, futuramente, venha a fazê-lo de forma independente e ativa (como ocorreu com K.). Vigotskii (1998, p. 112) nos esclarece acerca da imitação dizendo que:
A diferença substancial no caso da criança é que esta pode imitar um grande número de ações - senão um número ilimitado - que supera os limites da sua capacidade atual. Com o auxílio da imitação na atividade coletiva guiada pelos adultos, a criança pode fazer muito mais do que com a sua capacidade de compreensão de modo independente. A diferença entre o nível das tarefas realizáveis com o auxílio dos adultos e o nível das tarefas que podem desenvolver-se com uma atividade independente define a área de desenvolvimento potencial da criança.
Dessa forma ocorre uma apropriação consciente da língua, ou seja, o aluno com surdez não age apenas como um mero repetidor da língua oficial do país, mas é capaz de colocar-se como sujeito ativo. Isso ocorre exclusivamente, porque através da mediação, temos a oportunidade de reconhecer regras e conceitos impossíveis de serem
compreendidos apenas pela imposição de cópias e repetições orais.
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